sábado, 28 de novembro de 2009

Memórias

Caminho sem pressa, de chegar. Há sempre um outro que se desdobra e ao entar nele, outros sons, outros cheiros, se vão apresentando, como que a dizer, entra.

Talvez devesse mesmo voltar atrás. O sol já se pôs, lá em casa janta-se cedo e vou perder aquele rebuliço da aldeia dos fins de tarde; Os animais que regressam, as mulheres que vão preparar o caldo, com mais alguma coisa para aconhegar o estômago, as crianças que me olham sempre com aquele ar curioso, tal como eu fazia, sempre que chegava alguém da cidade. Tenho dias que os olhos bem de perto, e vejo-lhes no olhar aquele sol que só se consegue ver quando entramos bem fundo e visualizamos algo que brilha. Neste caso eles vêm de ajudar os pais, ou então de alguma brincadeira, mas que aqui neste lugar, tem sempre um cheiro a terra ou a urzes do monte. O gado vai andando por aqui e ali, e eles ainda crianças, vão arranjando algo para se entreterem.


Lembro-me tão bem desta cena há já tantos anos. Ficava encostada a um canto, sem nada dizer, mas observando os gestos, ouvindo com atenção as conversas e viajava por sitios que desconhecia, mas que sabia estaria próximo. Pois estava já mais que determinado que iria para Lisboa quando completasse a 4ª classe. Já lá tinha estado, mas não me dei nada bem lá. Voltei a pedido da minha avó Lívia que nos ajudou a nascer. Só nos tinha a nós. O meu avô emigrou para o Brasil e por lá ficou, morreu no ano que iria regressar. Netos, só eu e os meus dois irmãos Alberto e Herculano.
Existe por estes sítios uma magia que me prende, mas muitas vezes não sei explicar porque me detenho perante uma simples pedra mal arrumada no caminho. Lembro quase sempre nestas andanças, por estes lugares esquecidos, a minha avó, sempre que conduzia os carros carregados, ou de estrume para adubar as terras, ou de mato para cobrir o chão dos currais dos animais. Ela sempre preocupada com tudo o que os impedisse de poder subir as calçadas.

Porém, mas neste que agora estou, só há o canto dos pássaros, e alguns cucos que deslizam suvamente e muito alto por cima das copas dos pinheiros. Lanço um olhar breve sobre o céu que começa agora a mudar de cor, mas ainda não é desta que vou conseguir alcançar um cuco. Será mesmo melhor regressar à aldeia, e anhão quem sabe o que me espera.

Solidão

*
Seria eu um só rosto
de esperança
um só corpo
a desaguar nos teus olhos
se me visses agora
neste caminho
ao abandono
*
Na minha cidade
há rostos que se curvam
no pó dos caminhos
há bocas famintas
há braços caídos
há invernos tenebrosos
idosos encarcerados
e crianças em carreiros
mal amadas
abandonadas
*
Lá na minha aldeia
há um céu que brilha
há o cheiro a terra
há também a aragem suave
a erva que cresce
o rio que adormece
o alecrim do monte
a dor que se esquece
e mil e uma estrelas cadentes
*
Nesta nossa cidade
eu vejo olhos fechados
casas vazias
ruas enegrecidas
o Tejo que sempre apetece
enquanto olhares
esmorecem
num rio de saudade
*
Se eu fosse à minha cidade
e à minha aldeia
trocaria tudo
por um grão de areia
que voasse
que me libertasse
e que me fizesse sentir
que aqui e lá
o céu é da mesma cor
sempre que algo acontece
no meio da solidão