quarta-feira, 31 de julho de 2013

Iluminado o rosto do tempo



Esperava sempre pelo pão na minha mão. Quente a sair do forno.
Dourado tal como o sol que fizera amadurecer as espigas lá nos campos.
Fazia tudo com aquele jeito meio desajeitado, mas tão simples e natural, como é à noite: o nascer e o pôr da estrela, o virar das águas, o esperar pelas hora das levadas, o falar do tempo e para o tempo.

Separava as carquejas secas e ateavas-lhe o fogo, que esvoaçava em brandas chamas por entre o cruzamento dos seus braços. 
Iluminado era o rosto do tempo.
Ateado o chão das searas.
Consumido o tempo das colheitas no meio do milheiral.

(Havia espigas de milho espalhadas ainda pelo chão, e casulos secos para ajudar a atear o fogo.)

Era o pão de cada dia nos seus braços.
Era a pedra dura e ressequida a tapar o forno.
Era a bosta de vaca nas minhas mãos. Pedia a todos os santos que não ma mandasse ir buscar. 
(Fechava os olhos, enquanto com uma mão tapava o nariz, e com a outra, tentava arrancar do meio de um bosteiro imenso, o suficiente para selar a porta do forno.)
Digo bosta de vaca, porque ali, só elas puxavam o arado e o carro cheio de estrume para adubar as terras. Os bois, havia-os para cobrir as vacas. (Disso nem lembro muito bem. Ela não me deixava ver.)
Era tudo menos tédio naquele espaço. O fumo enchia o ar, até chegar aos meus olhos e os fazer lacrimejar.

E agora tudo é distante. Tudo se esfumou no tempo.
Tudo se lê nas paredes novas, rebocadas e pintadas de branco, “o Fim de um ciclo e o inicio de pouco mais que nada”.
Já não espreito a lua nem as estrelas pelas frestas das lousas, que compunham o telhado de xisto.
Já não vejo o alambique a funcionar.
Já  não vejo a água, fazer girar a mó do moinho lá em cima no monte.
Já não vejo a água, fazer girar a mó da azenha, e nem sinto o cheiro nauseabundo das azeitonas moídas, lá em baixo no barroco.

Agora tudo é anestesiante. 
Até às margens do rio se deixam corromper e se mostram nuas e oferecidas à nova flora. Dizem que são sinais da evolução, sinais dos novos tempos.
Tudo embarca na mesma poluição, aquela que corrói os caminhos forrados de alcatrão.
Tudo se move em sentido contrário.

Já não vejo as marchas fúnebres, nem ouço o bater das batinas dos padres no chão.
Já não sei como é o cheiro a incenso, quando bato à porta da Igreja.

Já se foi o verão, e com ele, o outono a cair nas mãos do destino.  
Rá tomará conta de si
Já a primavera se mostra tímida, com receio de se sumir por entre nortadas fortes. Chegam muitas vezes em Agosto e arrasam tudo. 
Uma desolação para que não haja pão.

Para onde irás,  agora rosto iluminado pelo tempo? Serás monumento ou simplesmente ruinas e cinzas espalhadas, a  Fénix esculturalmente aceite pelo teu chão?

Dolores Marques - 2013

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Elementos

Como quando todas as pedras do rio falavam
E me contavam a minha verdadeira história
Como quando à noite as estrelas se cansavam
E não caíam como focos cintilantes na minha memória

Já ninguém toca o sino da capela nem sequer imagina
Como soa na torre, a alvorada. Aquela que os seduz
Mas não se cala e nem por morte é a sua sina
Por isso, como consente ser vela, se nem é luz que reluz

Nem por sorte nem por mim colho os cravos desse jardim
Que por fado, já nem é morte mas vida simplesmente
Esta que sinto com cheiro a terra e aromas de jasmim
Que nem por sorte nem por mim a expiro completamente

A noite trouxe o fogo que já nem arde um só momento
Já nem o ar varre as ervas que se firmam no pó dos estios
E eu por terra adentro, fui só mais um elemento
A rasgar todas as vestes e com elas a cobrir outros gentios


Dolores Marques – Junho 2013

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Força Viva

Aguarda-se pela mudança para dar o passo seguinte e encontrar o novo, mas nem sempre a mudança nos traz o novo, mas sim uma sequência de trajes usados e gastos, que mais não são, do que trapos a taparem bueiros de poças a precisarem esvair-se por outros caminhos, revelando um passado. Este sim, a querer ser sempre novo! 

Digo-vos isto como parte introdutória de um pensar meu, que me leva ao fundo de um baú antigo onde estão guardados outros trajes, que por mais que se usem não se gastam. Embrenho-me por muitos caminhos, e muitas terras lavradas, que o foram com muito suor e muitas lágrimas; lágrimas de dor, lágrimas de alegria, e até lágrimas de fazer chorar as pedras da calçada, como diz o povo. Nele revejo uma grande senhora, a tentar que tudo se recompusesse aos seus olhos, que tudo fosse um paraíso neste paraíso - última fronteira do seu ser verdadeiro e natural, como o são, as belas paisagens das serras, o verde da erva tenra e macia que nasce nas terras, o doce madrugar dos frutos nas árvores, a beleza agreste das amoras que pintam e amansam as silvas nos silvados.

Descendo a aldeia e entrando por um caminho fundo, deixo-me levar ao encontro de outros encontros passados, e vou ao fundo dos seus olhos. Lembro-me sempre que os via a olharem o céu, como que a tentar saber o que o tempo lhe reservaria para o dia seguinte. Entretanto, a sua enxada que também lhe servia de bengala, dado o peso da idade, percorria os regos, desobstruindo e aliviando a passagem das águas. Ouvia-lhe a voz, que quase se confundia com o murmúrio da pequena corrente que descia das levadas. Existia ali uma força viva, uma viagem que se alongava em cada terreiro de milho que bebia daquele líquido milagroso. Enquanto os seus pés se afundavam na terra húmida, e a sua enxada traçava sulcos novos na terra seca, eu ouvia-a, quando falava com a água e com os milhos, com as nuvens e com o tempo, com o céu e com Deus. Simplesmente ouvia os sons que chegavam daquele fundo de vida, ainda a querer fazer da terra, uma nova terra à espera de novas sementes.

De novo e no sentido agora inverso, subíamos de novo aquele caminho. Ela com o avental preso de cada um dos lados à cintura, ia guardando as amoras maduras, que eu, enquanto mais segura em cima das pedras, lhas fazia chegar às mãos. Do lado esquerdo, parávamos a observar aquela casa que fazia cair pedra sobre pedra, parte do seu passado. Dizia-me ela que Moção já tinha sido sede de Concelho, que naquela casa funcionava o quartel, e que mais acima a outra casa maior e com 3 pisos, tinha sido o tribunal. Repetia-o tantas vezes para que não esquecesse. 

Sei agora o significado das suas palavras.

Forçada assim a remontar ao tempo em que todos os caminhos tinham uma história, assim vou entrando por novos caminhos, agora mais limpos de silvas e silvados, pelas mãos de minha mãe, que faz questão de preservar o que vai caindo em ruínas. No final do caminho junto a esta casa, que a minha tia Maria do Carmo dizia ser o quartel, está a agora em reconstrução, uma casa com mais de 200 anos, herança de minha avó. Lembro que ainda há poucos anos, teríamos que aceder a ela de lanterna na mão. (Não sei se já existe luz elétrica naquele caminho. Disseram à minha avó na época, que só colocariam luz elétrica junto às casas habitadas, por gente). 

E volto a lembrar aquela grande senhora que falava com a água e com os milhos,  com as nuvens e com o tempo, e com o céu e com Deus. Já cá não estava, para me contar esta história, o que para ela deveria ser só um indício de como apagar memórias e colocar uma luz mortiça a iluminar novos caminhos.

Dolores Marques – Ônix – Eventos/13