quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A festa dos doces ainda não terminou

O Natal não é o que era. Silêncio envolto no nevoeiro. O nevoeiro a engolir o silêncio. Cheiro a terra e a lenha na lareira a arder. Açúcar nas pontas dos dedos. Canela pelo chão. Um bezerro prestes a nascer. A matança do porco com o seu último urro, largava um eco fundo na aldeia.  O frio amaciava as couves tronchas. 
Quando na lareira se aquec
ia, a doce brisa colocava-lhe nas mãos uma luz verde - ponto luminoso que a apresentava ao mundo e a DEUS por mais um ano de Luz. À roda do fogo e da alegria, lambuzava-se da mística temporada que descia das serras, nas suas partículas de luz. Os animais mordiam o verde suculento dos campos e Sara  observava o céu a saber das mudanças do tempo para o dia seguinte.

Tudo era baço. Porém, decidira que tudo seria branco com a força dos ventos, e que o Natal fosse cedo. O vento uivava na serra, os cordeiros aninhavam-se na lã por tosquiar das ovelhas empoleiradas num socalco que desabara. Apesar do peso dos anos, Sara vendia saúde, para muitos futuros. Alisava com as mãos o cabelo e com ajuda de uma travessa, alinhava-o para o carrapito no alto da cabeça. 
Pendia sobre o braço esquerdo a pequena cesta de vime onde guardara uma estriga de linho. Ora fiando, ora guardando o gado, negava ao corpo algum descanso. Junto às ancas, o fuso forçado pela mão direita, rodava lentamente. A roca presa à cintura, apoiada no ombro esquerdo. Os animais não saiam do seu ritmo, com as beiças a castigar os montes de erva. Demorava-se na lentidão das horas. Apesar da ausência de tudo, havia um todo no infinito do seu olhar serrano. (O Natal avizinhava-se quando no Verão plantava o nabal de couves tronchas. Aguardava pelas fortes geadas para se terem doces e tenras como Deus manda) 

Sabia ser o último de 27 anos passados, em que se limitou a ser Mulher da terra e para a terra. No próximo ano, outras contas do rosário dariam nova vida à aliança que a fez ter dono e senhor de todos os seus pensamentos. 
Teria carne na salgadeira. As dornas e o lagar encheram-se do puro néctar das vinhas. São Martinho interpôs-se entre “As vinhas da ira”. Estas iriam ser mais suaves, acomodadas por entre os lençóis de linho ainda virgens, guardados na arca de madeira.



Era noite cerrada. Foi ver a Cabana e por ali ficou. Mais tarde Rute juntou-se-lhe. Sara, atenta, vigiava a fêmea prenha prestes a parir. Estendida no chão soltava gemidos lancinantes de dor. Lufadas de ar quente saiam da sua boca e aqueciam o espaço. A custo e a cambalear, levantou-se. Elevara-se o propósito de se fazer luz no momento de parir. Saiam as patas traseiras, depois o tronco. Sara, com os braços fortes de quem iniciou cedo o trabalho da terra, segurava as patas da pequena, mas já grande cria, auxiliando o parto.

A lanterna fixa na parede emitia uma luz muito ténue. Em silêncio e com os olhos arregalados, Rute parecia engolida pelo monte de feno, onde se sentara. A avó pediu-lhe uma boa braçada de onde extraiu um bom punhado. Serviu para limpar o sangue que lhe escorria das mãos, assim como fêmea e cria, acomodadas no restante feno. A luz mortiça ainda enchia de luz as negras paredes de xisto. 
Amparados os animais, chegou por fim o descanso merecido. Sara, enrolada na sua capucha de burel, iria ficar de vigília até de manhã. Rute regressou a casa. Um frio desnorte esbofeteou-lhe a face. Era agora um manto quente na sua pele. O remanso da noite inquietou-a. O sono tardio, tal a imensa força das imagens ainda presentes, para ainda uma criança.

A feira dos doze em Parada recebeu Sara com fulgor. Vendeu os bácoros. Um mês depois vendeu o bezerro na feira da vila. Mais alguns trocados, para fazer face à vida. No Inverno as terras descansam, assim como o seu corpo em lençóis de linho. O seu homem emigrara e contava já com 27 anos de ausência. Ficou só, e só se entregou à terra.

Rute acorda com vozes na cozinha. 
Enquanto uma prepara as panelas de ferro para o almoço, a outra ateia fogo na lareira com uma pinha seca.. 
- Senhora Mãe, a casa precisa de obras. Pode também mudar-se para a do fundo do povo. Só falta meio ano para a chegada de meu pai – diz-lhe Isaura.
- Foi aqui que me deixou há 27 anos, é onde me irá encontrar, responde Sara, fixando as labaredas que lambiam as pedras negras de xisto na lareira funda. 
Isaura continuava - Precisa de roupa e lenços novos. Os negros que usa, não dão vida ao seu rosto.
Sara disfarçou um sorriso, envolvendo-o num manto de silêncio. 

Na semana seguinte entrou na retrosaria do tio Manuel. Comprou lenços novos, tecido de chita para duas blusas e de burel para duas saias. Faltava um par de sapatos. Este Natal oferecera-lhe um presente requintado expresso nos seus gestos. Havia couves tronchas, bacalhau, filhoses de chila, aletria, pastéis de bacalhau e o cheiro a canela. Aceso o forno a lenha para o pão de ovos. A massa já levedara.
O próximo ano, seria em festa com a casa mais composta. Isaura iria abraçar o pai que se foi ainda ela era bebé. Rute iria conhecer o seu avô. Sara contemplativa, dividia-se entre a euforia e a ansiedade. 

Janeiro correu. Fevereiro anunciava a Primavera. De Março a Maio floriam os montes. Tudo era cor e amor a sorrir para o amor prestes a chegar. Finalmente Junho iria abrir sorrisos e calar tristezas de muitos anos. 

Rute acorda numa manhã cinzenta. Tudo era um manto negro. Choros abafados por gritos de dor e desespero. As lágrimas das duas misturavam-se em rituais de água benta a salpicar o soalho. Rute questiona o pai com os olhos, mas a sua imobilidade, leva-a a concluir que seu avô já não chegaria nesse mês. Aproximava-se mais um Natal, com as memórias de uns e as saudades de muitos, cravadas no peito.  

Rute precipitou-se calçada abaixo. Bebeu água na fonte e seguiu até à entrada da aldeia. Sentou-se com as costas apoiadas na pedra granítica que sustentava o cruzeiro, (a cruz que serviu de base para a crucificação de Cristo).  Imaginava o dia que seu avô carregaria sobre os ombros o andor com a Santa devota da aldeia - ritual em Setembro com a procissão em honra da Senhora da Livração - “Livrasse-se ela de não lhe trazer o seu avô de volta no próximo ano”, pensava , com a desilusão a marcar pontos no caminho que a levara até ali. 

Duas semanas passaram. Reinava ainda uma tristeza inquieta. Rute não a entendia, assim como o comportamento das pessoas da aldeia. Amassavam o ar com sussurros e olhares indiscretos.

Isaura fazia todos os vestidos de Rute. Aprendera costura em solteira. Rute acompanhava a evolução do seu vestido novo. Por fim os últimos retoques. A cor do rendilhado com pequenos bordados igualava-se à cor branca do tecido. Rute estranhou o degote em redondo, onde a mãe fixara um laço de veludo negro. Iam à missa

À entrada da Igreja, Isaura cobriu o cabelo escuro de Rute com uma mantilha branca. Todos as observavam. Uma das mulheres rezava ajoelhada. Rodavam por entre os seus dedos as contas do rosário de um negro vivo. Pegou na mão de Rute e fê-la ajoelhar a seu lado. Rute fez o sinal da cruz balbuciando - em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém.  
Murmurou – A sua bênção Avó – ao que a avó paterna respondeu – Deus te abençoe minha neta.
No lugar da Igreja destinado aos homens, seu avô paterno tinha já ao léu os seus cabelos brancos. O chapéu repousava no banco de madeira. Deu-se início à missa encomendada por Alma de seu Avô materno. 
Falecera num acidente trágico no Brasil. O local de trabalho foi consumido pelo fogo com ele dentro.

Após muitos anos, Rute viu sua avó partir no mesmo dia que falecera seu avô. Sentiu-a desfalecer. O seu peito balançava num arfar irrequieto. A respiração tornara-se longa e profunda. O olhar trancado à luz imensa que crescia agora no olhar de Rute, assim como a força dos quatro elementos remanescentes do seu espirito de luz. A festa dos doces ainda não terminou. Há sempre uma Primavera que a leva e a traz aos mesmos lugares. Às suas origens.
Quando o Natal faz cair um manto branco nas terras altas, um novo fio de ligação entre o céu e a terra preenche o ar com finas partículas de luz. À roda de uma lareira acesa em Dezembro, há um ritual luminoso por alma de Cristo morto na cruz. 

Dolores Marques

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Quem é Aurora Simões de Matos (Apresentação em Lisboa do livro "A Sobrevivente")


Aurora Duarte Simões de Matos nasceu no concelho de Castro Daire, numa bonita aldeia espraiada entre fartos milheirais e pinheiros bravios, numa das faldas do Montemuro. Ali, onde o rio se chama MÉDIO PAIVA, pois que a meio do seu percurso, entre a SERRA DA NAVE e a ILHA DOS AMORES, onde se junta ao misterioso Douro. 

Rio Paiva que Aurora trata no feminino, como se de ribeira se tratasse, como se de amiga lhe saboreasse a intimidade.

Sim, chamam a Aurora "CANTORA DA BEIRA-PAIVA".... " POETISA DA PAIVA"...." ROSA DO MONTEMU
RO"... carinhosos mimos que ela aceita, nomes  em que se revê, na missão que assumiu de cantar a sua terra e a sua gente.

Na nossa região, todos a conhecem, se não em pessoa... certamente de nome. É que, através de uma escrita escorreita e límpida, ela a todos chega, a todos compreende, faz parte da vida de cada um, pois que de cada um parece saber a história. Saber a história de cada um, contá-la ao mundo... a quem a quiser ouvir, melhor dizendo, a quem a quiser ler e entender. 

E assim, poema a poema, crónica a crónica, conto a conto, livro a livro, Aurora vai conquistando adeptos, admiradores, leitores fieis em todos os continentes. Por isso, cada seu livro publicado, rapidamente esgota edições, merece a atenção da imprensa, enche de orgulho tanto as gentes simples e laboriosas de uma ruralidade agreste, como as vozes mais intelectuais e cultas da beira-Paiva e Montemuro, a vasta região que visceralmente a apaixona.

Aurora Simões de Matos escreve e publica desde menina-criança, pela mão de alguns dos seus professores. Desde jovem adulta até ao momento actual, foi colaboradora de cerca de duas dezenas de publicações regionais da imprensa escrita. O que lhe granjeou um vasto número de leitores fidelizados, como já referi,  onde naturalmente se contam muitos apoiantes das comunidades portuguesas no estrangeiro.

Escreveu seis livros a título individual, mais nove em co-autoria. Em prosa ou poesia, está representada em diversas antologias. 
Tem uma crónica traduzida em várias línguas, que faz parte de um livro distribuído por vários museus do mundo.
Autora e apresentadora do programa " QUANDO O VERSO SE DESFOLHA" da Rádio Clube de Lamego.
Fundou, dinamiza e coordena a TERTÚLIA ARTES E LETRAS NO HOTEL LAMEGO, espaço mensal que vai no terceiro ano de existência, sendo uma importante referência cultural na região do Douro.
É autora da letra do Hino Oficial de Castro Daire.
Prefaciou e apresentou várias Obras de Autores diversos.
É Membro Académico Honorário da Academia de Letras e Artes Lusófonas. 
Possui vários galardões, medalhas e diplomas de algumas instituições portuguesas e brasileiras ligadas à Cultura.


Aurora Simões de Matos é Professora do Ensino Especial, aposentada do Ministério da Solidariedade e Segurança Social.

Tem três filhas, cinco netos e um bisneto.

Faz parte do espólio dos orgulhos castrenses e é uma honra trazê-la hoje aqui e falar-vos da nossa querida escritora, não só pela sua obra imensa de grande qualidade, como também pela pessoa que me deu a sua mão, permitiu que entrasse no seu mundo….quase como pegar num bebe ao colo, alimentá-lo e ensiná-lo a andar. Uma bela pessoa, uma Grande Mulher que pisa e pisou o mesmo chão que eu, respira o ar da serra, sente estas coisas da força da terra e das gentes das aldeias do Montemuro. 

Uma mulher que revela muita sensibilidade através do que escreve, mas não só, ela fá-lo a viva voz sem medos e com grande sentido crítico, muitas vezes. 
Um vídeo que não me canso de ouvir, quando ela diz na apresentação d
e “Contos de Xisto:

“….e tanta a gente a escrever sobre a Sé de Viseu….e quem haveria de escrever sobre a Capelinha de São Bartolomeu, escondida entre os verdes milheirais da minha terra, onde no dia do Stº Padroeiro, eu vos garanto, a capelinha de São Bartolomeu, é uma catedral maior que o mundo, onde cabem todos os sentimentos.
E tanta a gente a escrever sobre a grande rotina diária das famílias da actualidade em que o pai vai levar o seu filho de automóvel ao colégio. A mãe vai levar a sua menina à creche, e à noite os avós vão buscar os meninos todos….e sempre de carro. Trabalho meu deus, para psicólogos, sociólogos e um ror de ólogos. 

Só que na minha terra, não há ólogo nenhum a falar sobre aquela mãe que transportando o seu bebe à cabeça dentro duma canastra, a deposita uma manhã ou uma tarde inteira debaixo da oliveira maior ou à sombra da tanchoada”

Escreveu ela em contos de Xisto, estas e outras verdades escondidas por entre os penedos, amordaçadas num profundo silêncio, um labirinto, onde só quem conhece os vários caminhos, sabe como neles se movimentar e encontrar uma saída. Neles ficará um registo da grande Mulher que abraçou as suas gentes e as fez renascer em cada página que escreveu. Os seus livros serão um templo reunindo todos os sentimentos. Com as suas gentes se entregará aos desígnios de Deus e encontrará no Universo um novo caminho. 

Mas, este sentido crítico é revelador da mulher coragem, porque ela dá voz, à voz nascida no ventre da terra, e também fecundada no ventre materno.  Mas esta Mulher coragem, Aurora Simões de Matos, ousou ir em frente e com a edição dos seus livros, leva longe outras vidas, outros sentires, enfim outras mulheres. A exemplo disto temos este seu último livro “A Sobrevivente”

Porém, não posso deixar de referir que também ali está a minha avó, minha tia que ainda vive com 95 anos e tantas outras mulheres que foram a força da terra a germinar vida por entre as paredes de xisto.A semearem e cavarem a terra, a regarem os milhos, a cortarem mato no monte, a ajudarem os animais a parir, a cozerem o pão…etc. Sem nunca esquecerem a sua condição de mulheres no mundo, reflectido num olhar serrano dotado do conhecimento de vida na terra.

Invertendo a ordem das coisas, deixemos a Mulher escritora respirar a nova ordem de um mundo intensamente vivido no encontro com o outro. Caminhos de terra e de água, caminhos de vento e de fogo – a força intrínseca que lhe é natural, tal como são todas as paisagens das serranias. O mundo que abraçou retornará em silêncio num tempo que não será tempo, mas sim uma nova ordem de todas as coisas. Da sua nova varanda, voltada para as encostas, sossegar-se-á o corpo e os olhos no leito terno do rio, enquanto a sua alma, viajante, é um composto de várias fragrâncias a ocupar o espaço de um buraco negro no Universo. O Xisto, o seu longínquo caminho, abrirá caminhos novos a todos os que quiserem sentir a metamorfose laminar em ebulição constante. Pedra sobre pedra, lasca sobre lasca, ou simplesmente a imensa catedral em construção, o templo maior, edificado por palavras, que irão para todo o sempre ser a voz da terra, e terra com terra, respirarão a nova ordem das coisas Universais. 

Foi uma abordagem minha sobre a forma como a sinto, e muito mais haveria para se falar da escritora castrense, que aqui veio abraçar Lisboa com a “Sobrevivente”.


Aproveito para agradecer à Escritora Aurora Simões de Matos, por este aconchego, feito de pedaços de terra, de alma da terra. 

E por falar em “alma da terra”, aproveito para citar uns versos do poema - “Lembra-me um sonho lindo” de um grande poeta e compositor Português  – Fausto.

“Lembra-me um sonho lindo, quase acabado
Lembra-me um céu aberto, outro fechado
Estala-me a veia em sangue, estrangulada
Estoira no peito um grito, à desfilada

Ai! Como eu te quero! Ai! De madrugada!
Ai! Alma da terra! Ai! Linda, assim deitada!
Ai! Como eu te amo! Ai! Tão sossegada!
Ai! Beijo-te o corpo! Ai! Seara tão desejada!”

Maria Dolores Marques – 15/11/2014 – “A Sobrevivente”

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Celeste Almeida apresentou "Uivam os Lobos" no Museu João Mário em Alenquer

Falar de Dolores Marques, hoje com o pseudónimo Dakini, é para mim tarefa fácil!  
Fácil falar dela como PESSOA, pois tendo eu o prazer de a conhecer, viajo até  uma  pequena aldeia do concelho de Castro Daire , distrito de Viseu, perdida algures na serra do Montemuro!! 
Hoje perdida, mas em tempos remotos uma aldeia de grande importância administrativa pois foi um concelho, no inicio da nacionalidade! 
Moção, uma aldeia onde se ouvem “campainhas a chocalhar nos montes e nas mãos, línguas de fogo” (DO POEMA” LÍNGUAS DE FOGO”)! 
Uma aldeia onde as pessoas vão pela noite deitar as águas aos campos, receosas das misteriosas lendas de bruxas e lobisomens, que em noites de lua cheia amedrontavam novo e velho. 
No imaginário da autora encontram-se imagens simbólicas a carregadas de mistério, tal como esta: “Tinha um turbante dourado amarrado ao
pescoço…”
Será a serra abraçada pelos deuses ou pelo sol? 
Será o filho de deus a iniciar a sua peregrinação pela terra ainda virgem aos olhos da autora? 
Seria esta busca incessante pelo amor original, aquele que está acima de todas coisas? O verso “persegue-me esta brisa que me atiça em noites de lua cheia”  
Seria o seu imaginário quando a lua cheia iniciava o processo de transformação e o homem passava à forma animal, a BESTA ainda presente no seu tempo? O amor original, move-se da origem e atinge o núcleo do seu corpo em prazer factual e causal.

Uma aldeia onde o grão sofre a guilhotina da mó do moinho, onde se apanham as amoras das silvas e se comem lavadas no pó, onde se lavra a terra que cria o sustento “como se comem as amoras/ como se lavra a terra”   ( DO POEMA “ MOINHOS AO VENTO” )…enfim,  uma aldeia das terras altas, como altas eram as expectativas de Dolores Marques! 

Moção terra natal de Dakini, onde brincou com a lama, correu atrás das cabras e das vacas, fiou linho, teceu lã, bebeu água do fontanário e das nascentes térreas, rezou o terço ao serão, pediu a bênção ao Senhor pai e Senhora mãe, caiu e se reergueu  tantas e tantas vezes…era um berço demasiado pequeno para seu imaginário e ambição!
Inconformada por uma vida tão cheia de nada, pisando um chão feito pó, ouvindo o rezar dos sonhos jazidos no musgo, o toque das avé marias que a despertavam para a vida, querendo abraçar novos horizontes, respirar novos ares, tocar um céu maior, Dakini  resolve deixar para trás as suas origens, guardando na  alma os segredos voláteis, que ao longo da sua vida fizeram eco na voz do seu silêncio e na espuma dos seus dias!
Migra para a capital levando na bagagem o inconformismo que sepultaria na correnteza do Tejo, arregaça as mangas e lutadora singra na vida com determinação e mérito! 
“Um dia pensei…e eis que…por força das circunstâncias decidi partir, sem tempo para voltar…deixei-me levar para sítio incerto…” escreveu em “Uivam os Lobos”
Sem medo de assumir a vida e sem medo de se assumir a si própria, transforma o seu desejo criativo em escrita concreta. Ama e escreve o que sente. A poesia é parte do seu corpo. Escreve o tempo todo e  não apenas quando está diante do papel ou do computador! Esse é o momento final, em que as palavras saem dela e tomam forma exterior. 
UIVAM OS LOBOS, é o reencontro da autora com as suas origens, com a serra do Montemuro, com as terras altas, como ela orgulhosamente lhe chama!  
Filipe Campos Melo, o apresentador da obra no lançamento em Lisboa, referiu-se a este livro, como um regresso ao passado. Diz ele que este livro é uma peregrinação. 
Concordo com esta definição e que se encontra em 2 unicos momentos: Mimetismos e Cultos. 

A autora desloca-se no espaço e no tempo recriando novos espaços e novos tempos, povoados pelo seu imaginário dando voz a um tempo passado mas ainda presente tal como afirma Sofia Gabro no prefácio tratar-se “De Um palco de memórias, imensamente vividas, imagens remanescentes de um outro tempo, aqui presentes neste livro sob a forma de um eco” 
Será este UIVO dos Lobos, que na serra do Montemuro continua a acordar o vento, que a acompanhará ao longo da sua vida, esteja ela onde estiver! 
Dakini, Mulher coragem, determinada, sensível, afável…continua como ela diz: ” com receio de cair na boca do lobo” !
Dolores Marques iniciou esta aventura dos livros em 2008, com edição do seu livro “Olhares”, também este traduzindo muito das suas raízes. Aqui neste livro temos o nascimento da sua escrita, “uma escrita bebe”, como ela já o revelou. Poemas com uma linguagem simples, mas com a sensibilidade da mulher que tinha deixado para trás a força da terra e das gentes do Montemuro. 
“Subtilezas da Alma” o seu segundo livro de poesia em 2009 e em 2011 “Às escuras Encontro-te” o seu primeiro livro em prosa. 
Estes livros foram escritos em simultâneo, e por isso dentro da mesma linha temática. A introspeção abrindo caminhos, onde os silêncios ganhavam voz e a espiritualidade se desenvolvia para escritos mais profundos num encontro às escuras para chegar à luz que ia crescendo no seu mundo interior. 

Celeste Almeida

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

"Uivam os Lobos" - apresentação no Museu João Mário, Alenquer

"Uivam os Lobos"no Museu João Mário em Alenquer, dia 02 de Novembro, pelas 15h30m.
 A apresentação estará a cargo de Celeste Almeida, (autora dos programas "As Nossas Raízes, o Passado e o Presente, e "À Descoberta de Portugal" na Rádio Limite de Castro Daire.

O grupo Almas no Teatro fará uma representação de alguns poemas do livro




quarta-feira, 2 de julho de 2014

Ana Coelho apresentou Dolores Marques em Uivam os Lobos


Dolores Marques
A viver em Lisboa desde os 10 anos mas nunca esquecendo as suas origens. Sempre teve a necessidade de fazer outras coisas que não as de sempre, num período da sua vida, aceitou o convite para integrar o grupo folclórico e etnográfico da Casa do Concelho de Castro Daire em Lisboa, onde permaneceu cerca de 3 anos. Mais tarde foi impulsionadora na criação de um grupo de música tradicional portuguesa, com alguns elementos do rancho e outros que entretanto conheceu, tendo-se mantido este grupo apenas um ano, mas com um trabalho representativo dos cantares tradicionais da sua região, entre outros.
A fotografia é também um foco de interesse, focando-se ora na paisagem granítica da Serra do Montemuro, ora nas correntes do Rio Paiva, que passa próximo da sua aldeia, ou então; captando expressões de rostos, que com a terra convivem e dela tiram o seu sustento. Na cidade, os becos, os grafitis, as quintas abandonadas, os palacetes antigos, o rio Tejo são o que mais atrai a sua objetiva. 
“Aldeias da minha cidade” o título que tem dado aos últimos álbuns de fotos publicadas; são exemplo de que existe um fio de ligação entre a cidade e o campo, que ainda se mantém. O que se pode observar também, em outros álbuns a que deu o título de “Fragmentos do tempo”.
O primeiro livro de poesia “Olhares” surge em 2008, revelando assim o início da sua escrita. Neste livro nota-se já, uma forte ligação à sua terra natal e a todo o ambiente onde cresceu e passou a sua infância - A Serra do Montemuro, assim como o Rio Paiva, são imagens recorrentes e aqui descritas de  forma simples e natural, tal como era a sua escrita acabada de nascer, havia poucos anos. 
Logo após regista-se no site da editora WAFF onde inicia a publicação regular dos seus poemas, seguindo-se o site Luso-poemas. Site este; onde nos conhecemos e a Dolores foi um elo importante na minha escrita e naquilo que hoje sou na escrita, foi ela a impulsionadora para a minha primeira participação num livro; com a antologia Tu cá Tu Lá em 2009. Esta antologia nasce de um blogue, que a Dolores criou com o objetivo de unir autores e divulgarem as suas escritas. Criamos uma ligação de amizade e ajuda mútua, onde me foi permito conhecer a mulher para lá da escrita. Uma mulher com a força das suas palavras na vida. 
“Subtilezas da Alma” foi o seu segundo livro de poesia editado em 2009  e  o seu primeiro em prosa “Às Escuras Encontro-te” aconteceu em 2010.

Comecei a ler Dolores Marques, após edição do seu primeiro livro “Olhares”. Um livro de poesia simples e fluida aberta a todos os leitores.  
Seguindo-se o livro “Subtilezas da Alma”, e alguns textos em prosa publicados nos sites que fazia parte,  realça o seu interesse por uma filosofia oriental, período em que se dedicou a estas, e que complementou com a primeira e segunda iniciação em Reyki. Fez o primeiro nível de Sistema de Corpo Espelho, e inicia a prática de Taichi/Chikung
Os temas que apresenta na sua escrita vão-se alterando com o passar do tempo, querendo dar ao leitor e a si mesma a autora e não a mulher, Dolores Marques inicia uma separação da sua escrita: 
Dolores Marques desaparece dando voz ao perfil  “Ônix” - Matilde D’ônix.
Pouco tempo depois surge Dakini. A necessidade de revelação de um Eu mais realista; mais terra, mais ar, mais fogo, mais água. Um todo, tendo como ponto-limite, um ponto no espaço infinito. Um céu maior. Os fluxos migratórios das gentes da terra provocaram o seu encontro com a cidade onde vive há cerca de 50 anos. Mas mais uma vez, volta às origens e  nota-se em Uivam os Lobos e outros textos que a sua inspiração vem de lá das terras altas. 
Mais tarde, surge com outro perfil “Epifania”. Aqui manifesta-se um Eu oculto, que se revela em vários momentos da sua escrita. As publicações são na sua grande maioria em prosa, e os temas muito diversificados, ora terra, ora ar, ora fogo, ora água. Após questionar a autora sobre este perfil, que se manifestava de forma irregular na sua escrita, sendo que algumas pessoas inicialmente não entendiam muito bem se eram duas ou se só uma naquele perfil. Pessoalmente gostei muito deste pseudónimo e das duas vozes que “falavam” ao leitor. 
Confidenciou-me que levou algum tempo a entender quem dialogava com ela e a levava a escrever aqueles diálogos e que só poderia ser Dakini. Podemos aceitar que nos diálogos de Epifânia, a Dakini aparece e desaparece como por encanto? É que pelo que percebi, Epifania tem estado muito silenciosa. Será que ficou zangada, por este livro ser da Dakini e não dela própria?
Resumindo e pelo que já conversei com a autora, sobre estes pseudónimos, eles não foram pensados nem idealizados, foram surgindo consoante as variações da sua escrita e que segundo ela, serviram para separar a escrita, nos sites tal como a tinha já separada e com os devidos nomes. Dando a quem a lê a multiplicidade criativa de uma mulher \autora construtiva e diversificada. 
O seu maior orgulho de agora; os seus 3 netos, Guilherme, Afonso e Tomás

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Raízes

Enquanto elemento do Rancho Folclórico da Casa do Concelho de Castro Daire em Lisboa

Cultura, tradições danças, etnogafia

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Início do foral de Moção - Castro Daire

Início do foral de Moção-Castro Daire
Livro de forais Novos da Beira

Monçaom, Monçam, Moção, Mução ou Mossão, esta designação aparece em diversos documentos que se referem a Moção, pequena aldeia rural, situada na aba da Serra do Montemuro, nas proximidades de Pinheiro, sede de freguesia e, dista cerca de 8 Km da sede do concelho a que hoje pertence (Castro Daire).
Segundo o Cadastro da população do Reino (1527)pelo autor João Magalhães  Colaço ed. 1929 ao termo do “COMCELHO de MONÇÃOM” pertenciam os lugares de Cetos, Desfeita, “Luyçaom” (?),  Mouramorta, Picão, Pereira, Povos de Montemuro, Varzea Longa, Vila Seca e Ribas. Nestes lugares, no ano de 1527, vivam 156 moradores e na sede do Concelho, Moção 17.
A  obra citada, refere ainda; “Este concelho tem de termo huma legoa em largo e duas em longuo, parte e confronta pelo ryo paiva e com o concelho de lafoins e com a vila de Castro Daire e com o mosteyro da ermida e com o Concelho do omezio e com o concelho de roçaom e com o concelho de ferreyras e com o concelho de parada dester”.


Pelo citado, pode ver-se que se tratava de uma terra importante nesta região. Merece assim que se lembrem os 500 anos da data em que o Rei D. Manuel II, lhe concedeu foral – 16 de Maio de 1514. Estão de parabéns todas as pessoas que ali nasceram e vivem, bem como as dos lugares acima referidos, que àquela data integravam o referido concelho.
Vale a pena percorrer as ruas estreitas de Moção e reflectir sobre o seu passado, relacionando-o com o presente.

(A imagem que acompanha este artigo, foi extraída da obra – CASTRO DAIRE FORAIS MANUELINOS, 2001, pág. 68 e com as devidas referências ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Livro de Forais Novos da Beira, f 104 V, colI)

quarta-feira, 28 de maio de 2014

O meu próximo livro de Poesia "Uivam os Lobos"



“Uivam os Lobos” assemelha-se a um palco de memórias. Nele se contam, e encontram, de um modo imensamente vívido, uma série de imagens remanescentes de um outro tempo, aqui presente sob a forma de um eco, retumbando por entre os versos que o firmam.

“Sou libertina de um costume antigo
tenho o corpo feito de metais
boca de sangue e ferro
braços presos nos matagais”
(Do poema “Tenho medo”)

“Soando nas têmporas
as batidas cardíacas
a reboque de um eco forte
no alto da cabeça”
(Do poema “Marés Negras”)

Nos poemas de Dakini, os quatro elementos confluem de um modo contínuo e extremamente natural estando estritamente ligados à vida de quem vive no (e do) campo, debatendo-se com os efeitos nefastos das intempéries e jubilando com os tempos propícios ao afloramento. Desta forma, somos convidados a tomar parte de um mundo recordado e, consequentemente, também recriado, onde se ouvem as campainhas “a chocalhar nos montes” e o “caminhar das águas”, ao mesmo tempo que o fogo se ateia para que nele se concentrem “todas as fogueiras” e o “vento uiva”, apesar do seu eco adormecer sozinho “a contraluz”. 
Moção, a terra-origem de Dakini, desempenha, neste livro, um papel fulcral, servindo, não só de cenário e inspiração, como também de lugar de aprendizagem - já que foi aqui que a autora deu os seus primeiros passos e absorveu as suas primeiras estórias, iniciando a construção de todo um imaginário que a acompanhará ao longo da sua vida, despertando-lhe tanto temor quanto fascínio(...)

Do prefácio de Sofia Gabro

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Ecos


Permanece ainda
na quietude do adeus

A capa gélida que o cobre 
também já se calou 
faz tempo

Já não se ouve o tinir do vento
em murmúrios pálidos 
às pedras, aos matagais, aos milheirais

Tudo surge de um “nada”

Mas agora 
nada é indiferente a um “adeus”
quando as palavras inertes
tombam e rebolam pela terra arada

Dolores Marques (Dakini)

sexta-feira, 21 de março de 2014

Quem conta um conto

(...)Ajuizando todos os valores recebidos e a transmitir, colocou-se logo no início da aldeia, um cruzeiro em granito. A vida é assim por estas bandas. A força do granito, evidenciando a força da vida revestida de sofrimento e do abandono, que por consequência, os condenou ao isolamento. Enfim tudo o que se designa por viver em desatino, pelas leis de Deus ou da Igreja. Seio materno de todos os que nasceram, e por aqui morreram, sem poderem carregar a mesma cruz, mas ostentando pela vida fora, outras não menos pesadas(...)


Quem conta um conto....

Foto tirada na aldeia; Picão (Serra do Montemuro)

quinta-feira, 20 de março de 2014

Quem conta um conto

(…)Mas como diz o ditado, “o hábito faz o monge”. Visto-o e dispo-o sempre que preparo a mala para mais uma viagem à minha aldeia. De novo para recontar pedras e pisar terra molhada. De novo para desenterrar memórias. Enfim, preparada para o regresso às minhas origens. Moção uma aldeia esquecida, entre serranias. Esquecida por alguns, ali, nados e criados. Muitos não querem saber destes lugares. A fome fê-los arregaçar as mangas, e trabalhar a terra para poderem sobreviver. Outros horizontes nasciam nos seus olhos. Outros mundos se construíam no seu olhar. Outros nem querem lembrar do que passaram. Preferem ficar por lá, onde a vida lhes sorriu. E aqueles a quem vida sempre lhes permitiu sorrir, estão sempre à espera de novos movimentos nas suas mãos, entre o dar e o receber. Esquecida está também pela autarquia. Alimentem-se muitos cabritos, engordem-se e façam a troca de favores, com um simples aperto de mão e um bem-haja. Satisfazem-se assim todos os que têm fome de terra e de semear para colher, assim como os que tem fome de poder a roçar ainda o tempo dos senhores feudais. O bem acima e tudo, porque o tudo, esse é ponto assumidamente diferente para quem mexe na terra. A mistura só existe, quando se junta farinha de centeio com farinha de milho. Dois cereais abundantes e que aceitam as rajadas de vento como ninguém. Curvam-se, mas não se deixam abater mesmo com espigas no chão. Um exemplo da força da terra. E neste comércio local, onde as trocas habituais, se fazem muitas vezes sem palmadinhas nas costas, mas mãos nos bolsos a descansar da última refeição, se consegue algum benefício para estas terras. Muitos se alimentaram, para depois se esquecerem das sementes que deitaram à terra(…)

Dolores Marques

De um livro que me tem, de um livro que um dia…talvez lerão

Nascerão as flores


Ao cair das folhas
fecharei os olhos
e encherei a terra
de outros aromas

Nascerão as flores
de todas as cores
viverão para sempre
os livres amores

Ao cair das chuvas
lembrarei dos ventos
e dos rosmaninhos
pelos caminhos

Nascerão as flores
de todas as cores
viverão para sempre
os livres amores

Ao crescer-me o ventre
abrirei para sempre
as portas ao céu
restarei somente eu

Nascerão as flores
de todas as cores
viverão para sempre
os livres amores

Dolores Marques
Era Primavera quando tirei esta foto na Serra do Montemuro

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Névoas

Lá para os lados de Reriz, a serra assume um colorido esbranquiçado. Ao longe quase se pode sentir esta leveza a cobrir-se de pérolas que quase se veem a rebolar pelas encostas, indo mergulhar nas águas do Paiva. As gentes que ainda habitam estes lugares falam a linguagem maternal, condizente com a sua atitude perante a natureza a bailar nas suas palavras. È muitas das vezes, não um ponto de passagem, mas um ponto de paragem para tantas outras vozes, ruidosas e cavernosas.


Trabalham a terra à moda antiga e vivem no meio das montanhas. Os cumprimentos habituais, a azáfama do costume, a rega que é precisa:

- Os milhitos, coitadinhos que tanta sede têm" diz a tia Dulce. A minha mãe acena com a cabeça que as névoas lá ao longe, são um aviso de que o vento de cima vem aí talvez esta noite.

- Esperamos que não seja nada, mas que ele vem, vem. Assim nos despedimos, sem mais a dizer, com um "até manhã se Deus quiser".


De facto quando me fui deitar, já se ouvia o uivo característico do vento do Norte. Um eco a embalar-me o sono, com o qual adormeci até de manhã bem cedo, quando os guizos do rebanho do Carlindo me despertaram para o nascer do sol que estava prestes a acontecer.







Memórias

Há sempre um novo caminho que se apresenta com outros sons, outros cheiros, outras vozes  como que a dizer, entra, mas fico sempre com esta sensação de não ter o dever cumprido e penso que seria melhor voltar. O sol já se pôs, lá em casa janta-se cedo e perco aquele rebuliço da aldeia dos fins de tarde:

- Os animais que regressam dos campos, já fartos, parece que o seu destino é contar todos os dias as pedras da calçada. Olhos para o chão, campainhas a tilintar. São estas que me acordam manhã cedo, que por vezes me parecem melodias de outros tempos em que os sinos tocavam às almas.

- As mulheres com os canecos de água à cabeça, vão preparar o caldo, e mais alguma coisita para aconchegar o estômago.

- As crianças lançam-me aquele olhar que tão bem conheço, sempre que via chegar  alguém da cidade. Muitas vezes ainda com a cara suja de terra ou e amoras esborrachadas na pele. Veem de ajudar os pais, ou então de alguma brincadeira. Trazem todos, um cheiro a terra, a erva, ou a urzes e a alecrim do monte. 

Lembro-me tão bem destes olhares de há já tantos anos. Ficava encostada a um canto, sem nada dizer, mas observando os gestos, ouvindo com atenção as conversas dos chegados de Lisboa. Os Lisboetas, era como lhes chamavam. Há uma magia que me leva para outros mundos, lugares fundos e mal amanhados, mas muitas vezes não sei explicar, porque me detenho perante uma simples pedra mal arrumada no caminho. Lembro quase sempre da minha avó, quando conduzia os carros carregados, ou de estrume para adubar as terras, ou de mato para forrar o chão dos currais dos animais, preocupada com tudo o que os impedisse de poder subir as calçadas.

Agora neste caminho fundo que me irá levar por entre os pinheiros, os castanheiros e os sobreiros, só se ouve o canto dos pássaros. O canto do cuco estridente, umas vezes, vai deslizando suavemente,  por cima das copas dos pinheiros mais altos. Lanço um olhar breve ao céu que começa agora a mudar de cor. Ainda não é desta que vou conseguir alcançar o canto do cuco. Será melhor regressar à aldeia. Quem sabe o que me esperará por lá. O sol só escondeu-se faz pouco tempo. Ainda vejo uma mancha dourada no monte da aldeia vizinha - Desfeita.