segunda-feira, 27 de abril de 2015

A Voz do Fogo

“Moção, Uma Aldeia Esquecida”, um blogue criado em 2008 não chegou do centro de um nada, um desses nadas que se transformam em esquecimento. 

Surgiu assim a meio de um pensamento focado num monte de pedras mal arrumadas no caminho. Surgiu também em caminhos, por onde só se passava quando alumiados por uma lanterna a petróleo, apesar da existência de luz eléctrica em quase toda a aldeia. Para acedermos a uma casa antiga no fundo do povo, era assim, de lanterna na mão, e, pé ante pé para não cairmos no dito cujo, monte de pedras mal arrumado no caminho. Disseram à minha avó, quando instalaram luz eléctrica na aldeia, (eu estava lá e ouvi), que só colocariam luz eléctrica junto às casas habitadas por gente. 

Pensei cá para os meus botões, que as outras, as que só os “fantasmas habitavam”, não precisariam de luz. Engano o meu. Era então uma criança, com a força dos elementos a crescer dentro de mim.

Continuando a dissertar sobre “Moção, Uma Aldeia Esquecida”, um pensar que surgiu também de um pensamento que se escorria juntamente com um correr de água por um tubo que vinha lá do cimo do monte. Pensava porque “diabo” as águas que pertencem a todos por partes, a par com as Luas, com as Estrelas e o Sete-Estrelo, e até com o Sol, deveriam agora vir canalizadas só por um único sentido.

Visto que não entendi na altura, e porque continuo presa a um fio de água que se remete a um passado não muito longínquo, continuo com a mesma convicção: “Moção é mesmo uma aldeia esquecida por todos. (Moção mas não só!) E quando digo todos são mesmo todos. Às vezes, dou comigo a pensar, e pergunto-me: - existirá ainda alguma consciência a brotar por entre nascentes que resistam nas levadas, e se por acaso pensam nos erros das gerações passadas, as que já lá estão, no vale onde os pecados serão benzidos por outros fios de água? Pensarão os que cá estão também nas gerações vindouras? 
Foco-me agora não só em Moção, mas em todos os lugares onde não se sabe que caminho dar às águas. 

Não será à conta do que pretendem levar à socapa, pela calada da noite, abrindo bueiros de poças e virando regos nas levadas, nem tão pouco da desgraça alheia quando por via da desgraça se condena à má sorte, os que tentam proteger os terrenos e as águas que lhes pertencem, NÃO! Não será por conta da soma de anos de sofrimento a que se sujeitam e/ou sujeitaram algumas forças no feminino com crianças de colo NÃO! Que seja à conta da verdade de se ser gente de verdade no meio da serra, e com ela elevarem-se nas alturas, onde moram já todas as verdades das marcas de águas que escorreram, e fizeram mossas nos caminhos.

Têm consciência de que as gerações do futuro, se tiverem que regressar aos lugares onde têm as suas origens, quando ali chegarem terão por certo uma guerra para travar entre trovões e trovoadas e que se denominará de “A Guerra das Águas”?

Lamenta-se o fogo e o que ele provoca nas paisagens rurais e seus limítrofes. Triste a paisagem com lamentos escondidos por entre as folhagens. Mas quem conhece a terra sabe que atrás dos tempos vêm tempos, com eles nascerão muito em breve novos arbustos e novas folhas cobrirão os montes. É só chegarem algumas chuvas e tudo voltará a nascer. Porém, quando o fogo alastra, traz com ele uma voz profunda do centro da terra e descobre verdades escondidas há muito tempo, por tempos já esquecidos. Destapa marcos que muitos não pensavam voltar a ver para assim transmitirem aos seus, o que é de seu. (Ficariam os terrenos para quem se lembrasse deles, mais tarde). Descobre minas de água em terrenos áridos onde se cortava o mato para os currais dos animais. Essas águas serviram os tempos áureos das terras às quais pertenciam as águas, quando com elas se regavam os milhos e os feijões e as videiras e as oliveiras. 

Eu estava lá, vi e ouvi o caminhar de algumas dessas águas!

Agora, e ao fim de muitos anos consegue ver-se o que outros aproveitaram para lembrar o que os donos por via da velhice, esquecidos, eram muitas vezes levados a acreditar serem águas passadas em terrenos já subjugados pelos matagais. Os outros, que a migração dali levou foram em busca de melhores condições de vida, e as águas direccionadas para outros locais, lá iam silenciosas por entre tubagens enterradas no meio dos montes.

O que o fogo nos traz gente da minha terra. O que o fogo deixa a descoberto minha gente. Canalizações de água que servem os propósitos dos habitantes da aldeia e que por sua vez, servem os propósitos de outras aldeias. Vão-se os antigos com seu saber, e agora já não se sabe a que terrenos pertencem as águas, porque o início da guerra das águas chegou silenciosa e já deixa marcas nos caminhos. As marcas de um saber, que, o que os donos esquecem, outros insistem em lembrar sem nenhuma ordem focada no pensamento. Afinal, a aldeia de Moção continua a ser lembrada pelas suas águas e pelo que deu a beber num passado muito próximo.

O que o fogo descobre gente da minha terra! O interesse das gentes, das gentes que querem tudo e depois deixam um nada para os seus descendentes. O fogo, um dos elementos a ter em conta neste cenário esplendoroso, tem muito ainda para contar às gerações vindouras. Por isso pensem no que querem deixar como legado aos Vossos descendentes: se uma terra próspera com água distribuída para todos de forma equitativa, ou se uma guerra sem precedentes aos que a vierem a pisar um dia a mesma terra pisada por Vós, isto se TERRA assim o desejar. É o que teremos por certo.
Tudo isto me deixa triste e sem forças para subir o monte numa próxima vez.

Dolores Marques

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Nos braços dos homens



Tinham todos um corpo inteiro
Que vinha lá do tempo sem tempo
Chegavam todos os braços dos homens
Resgatados do mundo sem fundo

Eram os velhos e os novos
Eram os homens 
E os braços dos homens
Eram as mulheres de barrigas cheias
Que pariam nos braços dos homens

Todos juntos eram todos
Menos os outros que ficaram
A braços com a terra arada
Sem rumo e sem mundo choraram

Chegavam todos de corpo inteiro
Eram os velhos  e os novos
E eram as crianças de colo
Ainda nos braços dos homens

Carregavam a dor de um parto
Que ficou à parte dos homens
Vinham todos de um degredo
Vinham as mulheres e os homens
Vinham os velhos e os novos
Vinham os fardos de palha
Que a foice ainda lembrava

As mulheres de barrigas cheias
Pariam nos braços dos homens
E as crianças que eram de colo 
Ainda de braços estendidos
Caiam dos braços dos homens
Caminhavam descalças nas ruas

Choravam todos juntos
Junto às mães que de barrigas vazias
Se jogavam nos braços do mundo

Era um mundo lá do fundo
Do tempo dos braços dos homens
Era um tempo de degredo
À conta do mesmo medo
Que caia nos braços dos homens

Dolores Marques