Minha avó materna, filha de Abílio Ferreira e de Mª do Carmo Dias, regressa do Brasil com apenas 6 anos de idade. É na aldeia de Moção que ela cresce amando a natureza, aprendendo a trabalhar e também a amar a terra. Casa com o meu Avô de nome Herculano de Paiva e passados 3 anos vê-se sozinha. Este é um outro período forte pelas emigrações ocorridas, que levam mais pessoas a deslocarem-se ao Brasil em busca de novos rumos, para a construção de um futuro mais risonho para as famílias que vivem neste ermo, isoladas de tudo e dos meios para atingirem novos conhecimentos da vida. Tinha nascido a minha Tia Ida, e grávida já da minha mãe Deolinda, assim vê partir para terras longínquas o homem com quem casou e por quem esteve apaixonada até á sua morte, corria o ano de 1964. O meu avô por lá ficou, morto no local de trabalho que ardeu e com ele dentro.
Assim aconteceu com outras famílias, quer desta, quer de outras aldeias vizinhas.
É aqui nesta dureza, onde o granito faz mossa, que eu cresço em redor de uma força, que sempre me pareceu normal. Nesta aldeia, as mulheres sempre trabalharam ao lado dos homens e no caso da minha avó, ela tinha o pensar e a força de um homem, pela forma como lutava, para conseguir que as terras não ficassem de velho. Contratava quem as lavrasse e lhe ajudasse nas colheitas, mas todo o trabalho que envolvia a manutenção da terra; a rega, o tratamento dos animais, o estrume para as cortes dos animais, a lenha para a fogueira, era a ela que tudo fazia para que nada falhasse. Ela foi também e a última pessoa a abandonar o trabalho do linho, que eu adorava acompanhar; desde a plantação até à venda na feira, sem deixar de ficar com algum para ela própria fiar e mandar tecer lençóis, colchas, toalhas, etc. Ela negociava a madeira dos pinheiros, o valor porque teria que vender os animais, ela era tudo o que lhe tinha faltado, sem esquecer de ser também o amor, mesmo que há distância. Gostava de se divertir. Não faltava a uma festa e cantava e dançava para mim e meus irmãos, ao som da música de um rádio que ela ligava sempre que chegava a casa.
Faleceu há cerca de 15 anos. Lembro que ao recordarem certos episódios da sua vida, alguns homens das aldeias vizinhas, no seu velório, foram relatando feitos que ainda não sabia. Por altura da guerra que assolou o mundo e por estarmos numa zona forte em volfrâmio, foram feitas muitas extracções, pelo que contratavam pessoas para esse trabalho, das que por aqui viviam. As tarefas eram divididas e pagas consoante a dureza das mesmas. O trabalho mais duro era oferecido aos homens, o outro às mulheres, que se limitavam a limpar e separara os filões do resto dos detritos, que os homens acarretavam das minas. Esta mulher, optou por entrar na mina ao lado dos homens e desempenhar ela mesma, também essa tarefa.
Para além da dureza do trabalho e da vida, ela nunca deixou a sensibilidade fugir-lhe. Considero-a uma verdadeira mulher da terra e uma verdadeira poeta, pelas frases que me dizia e que eu em criança gostava, mas não entendia pela diversidade de carácter com variantes pouco comuns aos dias de hoje. Tudo muda e esta ligação à terra advém de uma força que nos é incutida, mas que se vai perdendo com o surgimento dos tempos modernos.
(“repara que até as pedras da calçada sorriem, para nós….”), disse-me ela num mês de Agosto, sempre que via a aldeia encher-se de gente. Gente também sua que se foi mais tarde para Lisboa, França e outros lugares. Sempre que se aproximavam os meses de verão, via-se no seu olhar um novo renascer para o mundo e para as gentes vindouras. Será que todos o entendem assim? Lamentavelmente, a vida deixa marcas que levam tempo a sarar. Estes sitios isolados do mundo e com uma maior incidência nas tarefas agrícolas, como minifundio, fizeram com que muitas das pessoas, após terem tico contacto com a suposta civilização, querem esquecer os tempos da fome, da miséria e do trabalho árduo que por aqui se desenvolve. Esperemos então para ver o que a vida nos reserva no futuro, e se estes lugares belos e montanhosos a perder de vista, não serão esquecidos e encaminhados tal como as águas a caminhar para o vazio. O rio Paiva passa mesmo lá em baixo. Serão estas águas cristalinas, o testemunho de outras fontes residuais ecarismáticas onde brota o granito, no meio das urzes, dos sargaços e dos pinheiros. Os sobreiros crescem e as oliveiras secam nos terrenos, assim como as videiras. A água é escassa e os resistentes de hoje, lutam sempre que chega o verão para poderem manter o que muitos esqueceram; os terrenos limpos e cultivados.
1 comentário:
Embrenhei-me nas montanhas sobranceiras à Paiva ( rio Paiva) a que eu gosto de chamar no feminino) e não sei se venho dos lados da serra de Montemuro ou se me deixei ficar numa das aldeias dispersas pelos montes. Sei que ao ler esta escrita, mergulho nesse mundo rural quase esquecido mas depositário de belezas raras, de cheiros inimagináveis, palco sobrevivente às imensas cenas ali representadas ao longo de séculos. Quase todos partiram deixando a terra ao abandono, quase sozinha nessa luta desesperada contra a desertificação. Há casa abandonadas, ruas inteiras onde só o vento caminha solitário. Há roseiras em beiras que deixaram há muito de ter água, há campos onde o arado não rasga a terra outrora produtora de pão. Há fantasmas a percorrer as noites, sombras de gente que já não mora ali mas deixa o pensamento regressar em busca de um tempo feliz ali vivido.
Ás vezes percorro esse espaço para sentir o clamor das saudades, ver de perto, ser testemunha ao menos, da agonia de um país que deixou de honrar-se a si próprio e perdeu as referências maiores da sua história. Se me ponho a pensar em tudo sentado numa pedra à beira da Paiva, é por que por mais que tente encontrar explicação para semelhantes crimes, nada de nada me ocorre perante a realidade que me cerca.
Esta é a reflexão que me aparece ao ler este texto, o acenar de cabeça de quem concorda com a escrita. Palavras, são apenas palavras mas têm o poder de despertar a história de um povo.
Deixo a serra ou vale onde corre um rio que não é o meu com a certeza que a Paiva, mais hora menos hora, há-de encontrar-se com o Douro e então este rio que é o meu, vai saber de tudo o que se passa nas montanhas.
M. Araújo da Cunha
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