terça-feira, 13 de outubro de 2015

Simplesmente uma varanda virada para o rio

CORAÇÃO DA TERRA
Simplesmente uma varanda virada para o rio

Não sei se existe ainda a palavra, com a qual se possa dissertar sobre algo que tenha a ver com a alma que colocamos em todas as coisas.
Como se vem sabendo, com o tempo tudo passa e muitas vezes até se esquece. Não sei se é assim com tudo o que ainda se firma entre os dedos, por termos nas mãos o destino que muitas vezes nos acontece. É que se firmam muitas vezes, as mãos em punho sobre a mesa, onde se escreveram odes a todas as coisas.
Sei que por muito pouco, o meu olhar não atingiu essa presença envolta num véu de onde se soltavam gemidos traídos por um céu replecto de sombras. Lembro-me tantas vezes porque nunca o meu olhar nos traiu, quando nos encontrávamos à beira mar e falávamos de um rio que ainda corre por montes e vales. Das suas correntes sabia-o bem pois nelas me deitava a olhar o céu e a contar quantos ajuizados haveriam de existir, para que chegando lá, me faltassem todas as palavras com as quais construímos muros e outras coisas. Seguimos por novos caminhos, porque nada nos faz ficar presos ao passado, tão-pouco juntos.

Se por causa de um qualquer culto, em que de joelhos no chão me dispunha a contar a tua história, me deixasse ficar a remexer a terra com apenas um dedo da minha mão, esse seria um dia admirável até por quem nas alturas me guiava os olhos em busca de um novo sermão. Riscaria na terra ainda húmida todas as letras com as quais escrevemos poemas in-duo, e os deixamos ficar a contar estrelas no céu daquela varanda virada para o rio.

Que bom que é, não ter passado nem presente e nem futuro. Que bom que é, Ser-se só, e sem nenhuma ordem de tempo. Se por lá houvesse algo que talvez se pudesse trazer para o presente, e quiçá levar todos os acordes desse som para um futuro próximo, onde os poemas se construíssem e não se substituíssem por qualquer ordem imposta por poetas, que no presente fazem histórias estruturadas com ecos impostos pelo pensamento abstracto.

Sei de um tempo, em que acreditar nas palavras com as quais se escreviam poemas, era um monocórdico volume, adulterado por um movimento aberto para quem quisesse ser seu amante, mesmo que o som fosse ultrajado por qualquer poema mastigado e depois cuspido. Lembra-me este facto um tal desaguisado entre um livro com poetas e não poetas, que prometiam ser fiéis à sua alma, mas que por qualquer razão dominante, se juntavam e se decapitavam uns e outros na mesma arena.

Sei também que na falta de um elemento, os outros, castigados pelos ventos, trocavam os nomes às coisas. Por isso, em prol da omnipresença de um todo, permitia que a nova mudança do tempo criasse em mim um saber de outros tempos, quando menina soltava ecos pelos campos, e madrugava os olhos no verde dos lameiros com enchentes de águas cristalinas nos cabelos.

Não sei porque este tempo do agora me permite ir lá atrás, arrastar o pensamento a uma maldição antiga, que foi quando o tempo se engoliu a si próprio, sobretudo quando também por causa do futuro se mantiveram as mesas de honra voltadas ao contrário.

Sei de um tempo nosso. Um só tempo que me permitiu Ser poeta e escrever sobre causas infinitas, num olhar sem passado, nem presente nem futuro. Simplesmente uma varanda virada para o rio.

Dolores Marques

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