Aguarda-se pela mudança para dar o passo seguinte e encontrar o novo, mas nem sempre a mudança nos traz o novo, mas sim uma sequência de trajes usados e gastos, que mais não são, do que trapos a taparem bueiros de poças a precisarem esvair-se por outros caminhos, revelando um passado. Este sim, a querer ser sempre novo!
Digo-vos isto como parte introdutória de um pensar meu, que me leva ao fundo de um baú antigo onde estão guardados outros trajes, que por mais que se usem não se gastam. Embrenho-me por muitos caminhos, e muitas terras lavradas, que o foram com muito suor e muitas lágrimas; lágrimas de dor, lágrimas de alegria, e até lágrimas de fazer chorar as pedras da calçada, como diz o povo. Nele revejo uma grande senhora, a tentar que tudo se recompusesse aos seus olhos, que tudo fosse um paraíso neste paraíso - última fronteira do seu ser verdadeiro e natural, como o são, as belas paisagens das serras, o verde da erva tenra e macia que nasce nas terras, o doce madrugar dos frutos nas árvores, a beleza agreste das amoras que pintam e amansam as silvas nos silvados.
Descendo a aldeia e entrando por um caminho fundo, deixo-me levar ao encontro de outros encontros passados, e vou ao fundo dos seus olhos. Lembro-me sempre que os via a olharem o céu, como que a tentar saber o que o tempo lhe reservaria para o dia seguinte. Entretanto, a sua enxada que também lhe servia de bengala, dado o peso da idade, percorria os regos, desobstruindo e aliviando a passagem das águas. Ouvia-lhe a voz, que quase se confundia com o murmúrio da pequena corrente que descia das levadas. Existia ali uma força viva, uma viagem que se alongava em cada terreiro de milho que bebia daquele líquido milagroso. Enquanto os seus pés se afundavam na terra húmida, e a sua enxada traçava sulcos novos na terra seca, eu ouvia-a, quando falava com a água e com os milhos, com as nuvens e com o tempo, com o céu e com Deus. Simplesmente ouvia os sons que chegavam daquele fundo de vida, ainda a querer fazer da terra, uma nova terra à espera de novas sementes.
De novo e no sentido agora inverso, subíamos de novo aquele caminho. Ela com o avental preso de cada um dos lados à cintura, ia guardando as amoras maduras, que eu, enquanto mais segura em cima das pedras, lhas fazia chegar às mãos. Do lado esquerdo, parávamos a observar aquela casa que fazia cair pedra sobre pedra, parte do seu passado. Dizia-me ela que Moção já tinha sido sede de Concelho, que naquela casa funcionava o quartel, e que mais acima a outra casa maior e com 3 pisos, tinha sido o tribunal. Repetia-o tantas vezes para que não esquecesse.
Sei agora o significado das suas palavras.
Forçada assim a remontar ao tempo em que todos os caminhos tinham uma história, assim vou entrando por novos caminhos, agora mais limpos de silvas e silvados, pelas mãos de minha mãe, que faz questão de preservar o que vai caindo em ruínas. No final do caminho junto a esta casa, que a minha tia Maria do Carmo dizia ser o quartel, está a agora em reconstrução, uma casa com mais de 200 anos, herança de minha avó. Lembro que ainda há poucos anos, teríamos que aceder a ela de lanterna na mão. (Não sei se já existe luz elétrica naquele caminho. Disseram à minha avó na época, que só colocariam luz elétrica junto às casas habitadas, por gente).
E volto a lembrar aquela grande senhora que falava com a água e com os milhos, com as nuvens e com o tempo, e com o céu e com Deus. Já cá não estava, para me contar esta história, o que para ela deveria ser só um indício de como apagar memórias e colocar uma luz mortiça a iluminar novos caminhos.
Dolores Marques – Ônix – Eventos/13
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