sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Coração da terra - O Voo Dos Pássaros

Coração da Terra
O Voo dos Pássaros


Gostava de vos ter encontrado num daqueles mergulhos no rio, em que ficávamos ali a aguentar o ar até não podermos mais. Nunca conseguia saltar lá de um pinheiro alto, de onde saltavam os rapazes. Eu andava sempre com os meus dois irmãos, mas mais com o mais novo, e por isso, sempre fui muito dada às brincadeiras dos rapazes. Tentava sempre fazer o que eles faziam! Mas, lançar-me lá daquele pinheiro alto, nunca. Procurava uma altura razoável para a minha também fraca altura. Mas nos mergulhos era sempre a vencedora, a que aguentava mais tempo debaixo da água.

Adoro nadar e mergulhar nas profundezas daquele manto esverdeado, deixar de ser eu para passar a ser ele.
Mais tarde é que percebi a minha dificuldade em me lançar das alturas e forçar o meu corpo a cortar a corrente, que quase sempre me amaciava os sentidos. As vertigens! Estão agora cada vez mais acentuadas. Isso mesmo. Cheguei então finalmente ao cerne da questão. Vertigens! São elas também, ou o impedimento ou o regozijo de muitas quedas, e/ou saltos programados lá das alturas. O céu que me desculpe esta minha intrusão nos seus propósitos inadiáveis.
Na verdade, as alturas estão cada vez mais na moda, porém, nós, cada vez mais nos encolhemos perante essa sombra imensa que se arrasta pela calçada. O sol talvez seja o culpado desse fenómeno raro que nos permite ver-nos espalmados no chão, ou grafitados nos muros. Eu prefiro ir de encontro a ela quando me enfrenta nos muros. Pelo menos está mais em equilibro, mais de acordo com a minha posição erecta. Quando me deito, ela quase sempre se deita comigo. A noite é talvez a maior dádiva que a minha sombra pode receber.
Mas voltando às brincadeiras, lembro-me também das lutas. De Vila Seca até Moção, deve ser uma hora de caminho a pé, não? Havia várias brincadeiras que nos esperavam depois de sairmos da escola: ou saltávamos de um muro xistoso para uma terra que estivesse lavradinha de fresco, a ver quem atingia a maior dimensão no salto, ou então lutávamos.
A primeira opção, a do salto também não me era afeiçoada. Os saltos também me incomodam, principalmente se forem muito altos. Sou mulher sim, mas nunca me dei bem com saltos. Deve ser também por causa dos problemas na coluna, que quase sempre prefere a posição vertical. Um dia também experimentei andar em bicos de pés e espalmei o nariz no intervalo das pedras da calçada. Por isso o estilo mediano como sempre, que é o que me dá mais segurança no andar, para depois também me sentir mais segura quando me dispuser a levantar. Mas voltando às lutas. Sabem aquelas lutas, em que nos agarrávamos com força a tentar derrubar o adversário? Depois impedia-se que se mexesse do chão.

Imaginem que um dia o meu irmão mais velho apostou com os rapazes de que eu iria sair vencedora dumas dessas lutas. Escolheram então o meu adversário e deu-se início à luta. Eu, assustada mas entusiasmada com a confiança que ele depositou em mim, arranquei força não sei de onde e ganhei mesmo a luta. Depois de o derrubar, ainda o obriguei a comer pó. E até me apetecia dar-lhe uns safanões. Isto, visto agora a esta distância é assustador, se pensar que depois, ele por se tratar do “sexo forte”, dizem, podia muito bem dar-me ali uma lição. Mas se pensarmos que existe uma espécie dentro desse universo masculino que tenta sempre proteger o género feminino. Não! Penso que não. Ele ia defender-se e pronto. Dar-me o gosto de sair dali uma vencedora, com as armas intactas e sem uma beliscadura no corpo.


Só me custa não me lembrar quem era o rapaz. Ele devia ter a minha idade ou então mais velho, um ou dois anos, porque andava na escola com o meu irmão. No meu tempo os rapazes não se misturavam com as raparigas e havia a escola masculina e a feminina.
Também me lembro de andarmos a explorar casas velhas, algumas já sem soalho e com as traves grossas que o sustentavam, ainda intactas mas quase a apodrecer. Um dia decidiram eles atravessar uma dessas traves de uma ponta à outra. Eu lá fui atrás deles. Caí ao curral dos animais. Pois, mas…a casa era desabitada e por isso o curral estava vazio. Havia por lá só umas tábuas e uns pássaros que decidiram ali fazer ninho. Eu via-os em voos dispersos enquanto caia. Eu era ainda criança. Nem andava na escola. Recordo de que, enquanto caía, o meu vestido se transformava numa espécie de para-quedas. Sabem como é! Não lembro de me ter magoado. Parecia estar a cair em cima de uma nuvem de algodão, ou então deveu-se ao facto de trazer ainda o registo do voo dos pássaros. Interessante que nessa idade não me lembro de ter vertigens. Deve então ser por isso mesmo. O voo dos pássaros!
E era assim que me divertia, mas com mais brincadeiras de rapazes do que raparigas. Elas só queriam brincar às coisas de meninas. Durante muito tempo, eu própria via-me como uma “Maria rapaz”. Isto porque tenho "Maria" no nome, mas ninguém se lembra disso. 
Mais tarde, o feminino decidiu irromper de vez, e o baton fez o resto, até ao surgimento de uma nova voz. Sabem que ela chega sempre na hora certa.
Lembrei de vos contar estas coisas, porque foi também o que me apeteceu escrever para mim.


Eu Sou Dolores Marques, Coração da Terra

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