quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A festa dos doces ainda não terminou

O Natal não é o que era. Silêncio envolto no nevoeiro. O nevoeiro a engolir o silêncio. Cheiro a terra e a lenha na lareira a arder. Açúcar nas pontas dos dedos. Canela pelo chão. Um bezerro prestes a nascer. A matança do porco com o seu último urro, largava um eco fundo na aldeia.  O frio amaciava as couves tronchas. 
Quando na lareira se aquec
ia, a doce brisa colocava-lhe nas mãos uma luz verde - ponto luminoso que a apresentava ao mundo e a DEUS por mais um ano de Luz. À roda do fogo e da alegria, lambuzava-se da mística temporada que descia das serras, nas suas partículas de luz. Os animais mordiam o verde suculento dos campos e Sara  observava o céu a saber das mudanças do tempo para o dia seguinte.

Tudo era baço. Porém, decidira que tudo seria branco com a força dos ventos, e que o Natal fosse cedo. O vento uivava na serra, os cordeiros aninhavam-se na lã por tosquiar das ovelhas empoleiradas num socalco que desabara. Apesar do peso dos anos, Sara vendia saúde, para muitos futuros. Alisava com as mãos o cabelo e com ajuda de uma travessa, alinhava-o para o carrapito no alto da cabeça. 
Pendia sobre o braço esquerdo a pequena cesta de vime onde guardara uma estriga de linho. Ora fiando, ora guardando o gado, negava ao corpo algum descanso. Junto às ancas, o fuso forçado pela mão direita, rodava lentamente. A roca presa à cintura, apoiada no ombro esquerdo. Os animais não saiam do seu ritmo, com as beiças a castigar os montes de erva. Demorava-se na lentidão das horas. Apesar da ausência de tudo, havia um todo no infinito do seu olhar serrano. (O Natal avizinhava-se quando no Verão plantava o nabal de couves tronchas. Aguardava pelas fortes geadas para se terem doces e tenras como Deus manda) 

Sabia ser o último de 27 anos passados, em que se limitou a ser Mulher da terra e para a terra. No próximo ano, outras contas do rosário dariam nova vida à aliança que a fez ter dono e senhor de todos os seus pensamentos. 
Teria carne na salgadeira. As dornas e o lagar encheram-se do puro néctar das vinhas. São Martinho interpôs-se entre “As vinhas da ira”. Estas iriam ser mais suaves, acomodadas por entre os lençóis de linho ainda virgens, guardados na arca de madeira.



Era noite cerrada. Foi ver a Cabana e por ali ficou. Mais tarde Rute juntou-se-lhe. Sara, atenta, vigiava a fêmea prenha prestes a parir. Estendida no chão soltava gemidos lancinantes de dor. Lufadas de ar quente saiam da sua boca e aqueciam o espaço. A custo e a cambalear, levantou-se. Elevara-se o propósito de se fazer luz no momento de parir. Saiam as patas traseiras, depois o tronco. Sara, com os braços fortes de quem iniciou cedo o trabalho da terra, segurava as patas da pequena, mas já grande cria, auxiliando o parto.

A lanterna fixa na parede emitia uma luz muito ténue. Em silêncio e com os olhos arregalados, Rute parecia engolida pelo monte de feno, onde se sentara. A avó pediu-lhe uma boa braçada de onde extraiu um bom punhado. Serviu para limpar o sangue que lhe escorria das mãos, assim como fêmea e cria, acomodadas no restante feno. A luz mortiça ainda enchia de luz as negras paredes de xisto. 
Amparados os animais, chegou por fim o descanso merecido. Sara, enrolada na sua capucha de burel, iria ficar de vigília até de manhã. Rute regressou a casa. Um frio desnorte esbofeteou-lhe a face. Era agora um manto quente na sua pele. O remanso da noite inquietou-a. O sono tardio, tal a imensa força das imagens ainda presentes, para ainda uma criança.

A feira dos doze em Parada recebeu Sara com fulgor. Vendeu os bácoros. Um mês depois vendeu o bezerro na feira da vila. Mais alguns trocados, para fazer face à vida. No Inverno as terras descansam, assim como o seu corpo em lençóis de linho. O seu homem emigrara e contava já com 27 anos de ausência. Ficou só, e só se entregou à terra.

Rute acorda com vozes na cozinha. 
Enquanto uma prepara as panelas de ferro para o almoço, a outra ateia fogo na lareira com uma pinha seca.. 
- Senhora Mãe, a casa precisa de obras. Pode também mudar-se para a do fundo do povo. Só falta meio ano para a chegada de meu pai – diz-lhe Isaura.
- Foi aqui que me deixou há 27 anos, é onde me irá encontrar, responde Sara, fixando as labaredas que lambiam as pedras negras de xisto na lareira funda. 
Isaura continuava - Precisa de roupa e lenços novos. Os negros que usa, não dão vida ao seu rosto.
Sara disfarçou um sorriso, envolvendo-o num manto de silêncio. 

Na semana seguinte entrou na retrosaria do tio Manuel. Comprou lenços novos, tecido de chita para duas blusas e de burel para duas saias. Faltava um par de sapatos. Este Natal oferecera-lhe um presente requintado expresso nos seus gestos. Havia couves tronchas, bacalhau, filhoses de chila, aletria, pastéis de bacalhau e o cheiro a canela. Aceso o forno a lenha para o pão de ovos. A massa já levedara.
O próximo ano, seria em festa com a casa mais composta. Isaura iria abraçar o pai que se foi ainda ela era bebé. Rute iria conhecer o seu avô. Sara contemplativa, dividia-se entre a euforia e a ansiedade. 

Janeiro correu. Fevereiro anunciava a Primavera. De Março a Maio floriam os montes. Tudo era cor e amor a sorrir para o amor prestes a chegar. Finalmente Junho iria abrir sorrisos e calar tristezas de muitos anos. 

Rute acorda numa manhã cinzenta. Tudo era um manto negro. Choros abafados por gritos de dor e desespero. As lágrimas das duas misturavam-se em rituais de água benta a salpicar o soalho. Rute questiona o pai com os olhos, mas a sua imobilidade, leva-a a concluir que seu avô já não chegaria nesse mês. Aproximava-se mais um Natal, com as memórias de uns e as saudades de muitos, cravadas no peito.  

Rute precipitou-se calçada abaixo. Bebeu água na fonte e seguiu até à entrada da aldeia. Sentou-se com as costas apoiadas na pedra granítica que sustentava o cruzeiro, (a cruz que serviu de base para a crucificação de Cristo).  Imaginava o dia que seu avô carregaria sobre os ombros o andor com a Santa devota da aldeia - ritual em Setembro com a procissão em honra da Senhora da Livração - “Livrasse-se ela de não lhe trazer o seu avô de volta no próximo ano”, pensava , com a desilusão a marcar pontos no caminho que a levara até ali. 

Duas semanas passaram. Reinava ainda uma tristeza inquieta. Rute não a entendia, assim como o comportamento das pessoas da aldeia. Amassavam o ar com sussurros e olhares indiscretos.

Isaura fazia todos os vestidos de Rute. Aprendera costura em solteira. Rute acompanhava a evolução do seu vestido novo. Por fim os últimos retoques. A cor do rendilhado com pequenos bordados igualava-se à cor branca do tecido. Rute estranhou o degote em redondo, onde a mãe fixara um laço de veludo negro. Iam à missa

À entrada da Igreja, Isaura cobriu o cabelo escuro de Rute com uma mantilha branca. Todos as observavam. Uma das mulheres rezava ajoelhada. Rodavam por entre os seus dedos as contas do rosário de um negro vivo. Pegou na mão de Rute e fê-la ajoelhar a seu lado. Rute fez o sinal da cruz balbuciando - em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém.  
Murmurou – A sua bênção Avó – ao que a avó paterna respondeu – Deus te abençoe minha neta.
No lugar da Igreja destinado aos homens, seu avô paterno tinha já ao léu os seus cabelos brancos. O chapéu repousava no banco de madeira. Deu-se início à missa encomendada por Alma de seu Avô materno. 
Falecera num acidente trágico no Brasil. O local de trabalho foi consumido pelo fogo com ele dentro.

Após muitos anos, Rute viu sua avó partir no mesmo dia que falecera seu avô. Sentiu-a desfalecer. O seu peito balançava num arfar irrequieto. A respiração tornara-se longa e profunda. O olhar trancado à luz imensa que crescia agora no olhar de Rute, assim como a força dos quatro elementos remanescentes do seu espirito de luz. A festa dos doces ainda não terminou. Há sempre uma Primavera que a leva e a traz aos mesmos lugares. Às suas origens.
Quando o Natal faz cair um manto branco nas terras altas, um novo fio de ligação entre o céu e a terra preenche o ar com finas partículas de luz. À roda de uma lareira acesa em Dezembro, há um ritual luminoso por alma de Cristo morto na cruz. 

Dolores Marques