quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Névoas

Lá para os lados de Reriz, a serra assume um colorido esbranquiçado. Ao longe quase se pode sentir esta leveza a cobrir-se de pérolas que quase se veem a rebolar pelas encostas, indo mergulhar nas águas do Paiva. As gentes que ainda habitam estes lugares falam a linguagem maternal, condizente com a sua atitude perante a natureza a bailar nas suas palavras. È muitas das vezes, não um ponto de passagem, mas um ponto de paragem para tantas outras vozes, ruidosas e cavernosas.


Trabalham a terra à moda antiga e vivem no meio das montanhas. Os cumprimentos habituais, a azáfama do costume, a rega que é precisa:

- Os milhitos, coitadinhos que tanta sede têm" diz a tia Dulce. A minha mãe acena com a cabeça que as névoas lá ao longe, são um aviso de que o vento de cima vem aí talvez esta noite.

- Esperamos que não seja nada, mas que ele vem, vem. Assim nos despedimos, sem mais a dizer, com um "até manhã se Deus quiser".


De facto quando me fui deitar, já se ouvia o uivo característico do vento do Norte. Um eco a embalar-me o sono, com o qual adormeci até de manhã bem cedo, quando os guizos do rebanho do Carlindo me despertaram para o nascer do sol que estava prestes a acontecer.







Memórias

Há sempre um novo caminho que se apresenta com outros sons, outros cheiros, outras vozes  como que a dizer, entra, mas fico sempre com esta sensação de não ter o dever cumprido e penso que seria melhor voltar. O sol já se pôs, lá em casa janta-se cedo e perco aquele rebuliço da aldeia dos fins de tarde:

- Os animais que regressam dos campos, já fartos, parece que o seu destino é contar todos os dias as pedras da calçada. Olhos para o chão, campainhas a tilintar. São estas que me acordam manhã cedo, que por vezes me parecem melodias de outros tempos em que os sinos tocavam às almas.

- As mulheres com os canecos de água à cabeça, vão preparar o caldo, e mais alguma coisita para aconchegar o estômago.

- As crianças lançam-me aquele olhar que tão bem conheço, sempre que via chegar  alguém da cidade. Muitas vezes ainda com a cara suja de terra ou e amoras esborrachadas na pele. Veem de ajudar os pais, ou então de alguma brincadeira. Trazem todos, um cheiro a terra, a erva, ou a urzes e a alecrim do monte. 

Lembro-me tão bem destes olhares de há já tantos anos. Ficava encostada a um canto, sem nada dizer, mas observando os gestos, ouvindo com atenção as conversas dos chegados de Lisboa. Os Lisboetas, era como lhes chamavam. Há uma magia que me leva para outros mundos, lugares fundos e mal amanhados, mas muitas vezes não sei explicar, porque me detenho perante uma simples pedra mal arrumada no caminho. Lembro quase sempre da minha avó, quando conduzia os carros carregados, ou de estrume para adubar as terras, ou de mato para forrar o chão dos currais dos animais, preocupada com tudo o que os impedisse de poder subir as calçadas.

Agora neste caminho fundo que me irá levar por entre os pinheiros, os castanheiros e os sobreiros, só se ouve o canto dos pássaros. O canto do cuco estridente, umas vezes, vai deslizando suavemente,  por cima das copas dos pinheiros mais altos. Lanço um olhar breve ao céu que começa agora a mudar de cor. Ainda não é desta que vou conseguir alcançar o canto do cuco. Será melhor regressar à aldeia. Quem sabe o que me esperará por lá. O sol só escondeu-se faz pouco tempo. Ainda vejo uma mancha dourada no monte da aldeia vizinha - Desfeita.