quinta-feira, 14 de maio de 2015

Histórias de um rio

Isolados, no meio da serra trabalham a terra, e com ela remedeiam a vida que lhes é cruel e  pouco lhes dá. Não fosse pela forte ligação à natureza, poderia dizer-se serem escravos de si mesmos numa terra árida e agreste, a terra da má sorte. Porém, a mesma natureza oferece-lhes alguns raios de sol e uma fresta de luz que vem do céu nítido e brilhante, tal como alguma liberdade de pensamento.

De passagem por Ester e como sempre um olhar sobre o Rio. A ponte ostenta a cada ano que passa as suas ruínas, as quais lhe conferem um dos ex-líbris do Concelho, pela imagem que se confere num dos mais belos postais turísticos. O rio corre silencioso ao fundo por entre os pinheiros e os amieiros. Sente-se o seu pulsar sereno avivando os montes que lhe concedem um estado ainda virgem.
Encontram-se, tal como aqui, muitos outros vestígios da passagem dos Romanos. Podem ver-se nas pontes que ainda sobrevivem, como é o caso da ponte Pedrinha à entrada da vila. Em Grijó, a ponte de Cabaços, dá mostras, de que a arte moderna já por ali passou através da construção da nova ponte. A outra encontra-se ainda a querer sobressair no tempo que lhe deu vida.
Miro-a a cada ano que passa tentando contar as pedras que mergulharam nas águas deste rio. Se o vento soprasse de mansinho, a água correria no sentido oposto e até os peixes deslizariam pelas fragas soltas cobertas de um musgo acastanhado. Mas não! Não se sente nem um aroma de brisa e o vento do norte vem quase sempre neste mês de Agosto. É à noite que ele se sente com maior intensidade. Ouço-o sempre antes de dormir, quando se adentra pelos terrenos arrasando as culturas. O eco ruidoso que deixa à sua passagem, é revelador da sua força, sentida bem firme nas terras altas do Montemuro.



Decidi ouvir as correntes que quase sempre são rápidas no seu trajeto até à ponte. A água deste lado tinha a calmaria de um manto de ervas de linho, o contraste perfeito com os ramos dos amieiros e as carumas lânguidas dos pinheiros que sobrevoam as correntes. Observo as margens do poço fundo e as bogas que se apossaram das correntes paradas, olham-me de soslaio sem saberem se hão-de ir, ou se preferem ficar. Os peixes que por aqui abundam têm quase todos a mesma cor. Coloco um pé na água para lhe sentir a frescura e abafar este calor que se sente sempre em Agosto, e é vê-los a deslizar uns para um lado, outros para o outro, escondendo-se por detrás das rochas.

Após crescer ao sabor do vento, a erva é sempre um pasmo para os olhos e ócio para o corpo, um convite ao descanso, quando o sol está prestes a passar a linha que separa serras, monte e vales. O céu a querer atingir a cor índigo, mas não sem antes deixar um sombreado nas águas que mais parecem luas gigantes a boiar no meio do oceano.

Irrompem pelo meu silêncio vozes soltas que vão chegando. Crianças com frenesis nos pés enquanto os pais em êxtase perante a paisagem que se lhes oferece terna e aconchegante. Procuram todos um lugar certo mas sempre a tagarelar. Elas, as mães despem as crianças, colocam-lhes no corpo proteção solar, boias para as que não sabem nadar. Observo a água cada vez mais apetecível. Lá, onde o sol não chega, à fundura das águas, a cor assume-se mais escura, como se a corrente fosse a dor de um dia acorrentado. Falta-lhe o brilho das pequenas partículas de areia que eu pegava sempre quando em criança vinha aqui nadar.

 A linha estava bem traçada e não avançávamos mais do que três ou quatro metros desde o início da margem. Faltava-me a segurança de hoje para simplesmente entrar na água e afundar-me nela, inspirar, expirar, e deixar-me ir até me cansar.

Nisto ouço alguém chamar por mim. Encontro um amigo de infância. Falámos durante algum tempo. Lembrámos outros que também se foram tal como nós para a cidade. Falámos das brincadeiras, dos jogos, dos concursos que inventávamos ali mesmo naquele local. Pergunto-lhe:
- Lembras-te das nossas loucuras, das nossas brincadeiras de crianças, quando nos aventurávamos a saltar do topo daquele pinheiro. Bem… agora está mais alto, mas mesmo assim, para crianças da nossa idade, na época era um gigante não achas?

Ele ria e dizia em tom baixo, como se temesse que alguém ouvisse.
- E se soubesses o medo que eu tinha de fazer aquilo. Só o fazia porque o teu irmão e os outros se lançavam dali sem medo. Não podia dar parte de fraco, mas o meu coração batia tão forte. Vê só as rochas enormes bem perto de onde mergulhávamos.

- Sim tens razão Mário. Eu não saltava. Nunca consegui. O que mais me agradava era aquele jogo em que mergulhávamos para ver quem conseguia aguentar mais tempo debaixo de água. Esse sim eu gostava. Mas sabes? Eu sempre ouvia a minha avó, a minha mãe e a minha tia dizerem que as crianças trazem sempre por perto o seu anjo da guarda. Lembras-te de quando nos lembrámos de explorar casas velhas a cair de podres? Isso era perigoso. Entrávamos por lá adentro e atravessávamos as traves a desfazerem-se e já sem soalho à volta. Eu numa dessas brincadeiras caí. Lembro-me ainda agora do meu vestido branco se transformar num balão, tipo para-quedas. Fui até lá abaixo sempre a planar. Não me vais dizer que foi o meu vestido que me ajudou? Estava lá ele de certeza!

Nisto, ouvia-se uma voz de mulher que ecoava por entre o pinheiral. Era sua esposa, avisando-o do adiantado da hora. Despedimo-nos. Ainda fiquei a vê-lo entrar na água e deslizar rápida e suavemente até atingir a margem do outro lado, mais perto do sítio onde quase sempre largamos as viaturas. Sorri, lembrando que também ele aprendeu tal como eu a nadar ali em criança. Estávamos os dois no nosso espaço.
Terra rude mas ao mesmo tempo aconchegante, como uma mãe está sempre para abraçar um filho ausente. Terra sem idade, agreste, selvagem mas plena e sem vertigens nos olhos.


Entrei na água e ali fiquei, ora nadando, ora boiando na corrente calma e serena, enquanto dirigia o olhar para o céu. Ali, é um sono aberto para o infinito de cor azul.
Passado algum tempo decido voltar. Fez-se tarde! Noto-o pela posição do sol já perto de passar o alto do monte. Volto a mergulhar e ao alcançar a margem vejo um homem de estatura tão pequena, que mais me parecia uma criança, a dirigir-se na minha direção. Olho à minha volta e reparo que todos se tinham ido embora. Era quase hora de jantar. O homem olhava-me como se me conhecesse, mas era-me totalmente desconhecido.
Quando já próximos, perguntou-me se tinha visto algum rapaz que ali tivesse chegado de bicicleta, que procurava os seus familiares. Eu observava-o, enquanto me vestia mas com um nervoso miudinho a embrutecer-me os olhos, pela mudança do e no tempo com um início de conversa a entrar pelo lusco-fusco adentro.
Ele esqueceu a família que procurava, assim como eu, os meus pais que deviam estar também à minha espera. Já falávamos de muitas coisas: de Fé, de Deus, de Anjos, de pessoas, do amor, de alegrias, de tristezas, de épocas vividas e por viver. Falávamos do rio e das suas correntes e da terra, sim do cheiro da terra.
Falámos de tantas coisas em tão pouco tempo, que nem sei o tempo que ali ficámos no mesmo lugar onde eu tinha deixado a roupa, e ele se quedara quando do nosso encontro. Eu com os pés dentro da água não sentia as pedras debaixo dos meus pés. Ele continuava ali em cima do monte de terra onde as ervas crescerem mais do que o normal, no meio dos juncos.
 Enquanto conversávamos, ia reparando nos traços que da sua fisionomia. Era um ser minúsculo, diferente das pessoas que até ali a vida me permitira conhecer, à exceção de um ou outro anão.
Tinha um corpo muito magro, aí com um metro de altura, orelhas grandes, esguias e bicudas no topo, boca grande para a estatura. Os olhos, ora verdes, ora cinza, ora azuis, ora castanhos, mas quase sempre se apresentavam entre variantes coloridas indefinidas.


Quando lhe sugeri que fossemos, que estava a ficar tarde, indicou-me a casa lá no meio do monte e que eu estive quase para conhecer de perto. Contou-me as histórias das famílias que a habitaram, dizendo-me que morava mesmo do lado esquerdo dela, mas que por via do crescimento dos pinheiros era impossível ver-se dali.  Pensei para mim, que ele não deveria estar bem de saúde, pois nunca naquele sítio, eu tinha visto uma casa.
Observo-o com mais cuidado, e penso que para ser um habitante daquele lugar havia uma falha que consistia na ausência do sotaque tão característico e que me causou alguns dissabores quando a  viver para Lisboa.
Estranhamente, encontro-me entre pensamentos indecifráveis, como se aquilo não fizesse parte de uma realidade mas de um conto qualquer onde a ficção existe para dar vida própria aos personagens de uma pequena história ou estórias mirabolescas de um rio. Deduzo que talvez fosse ali só para falar comigo.
Mas, a ser assim, talvez tivesse para mim, alguma uma mensagem importante. O meu pensamento é interrompido pela voz de minha mãe, que envolvida com a corrente do rio passava silenciosa. Abro os olhos e pergunto-lhe: - Onde está ele? O meu Anjo?
Responde-me sorrindo, depois de ter olhado para um e outro lado: - Adormeceste e sonhaste com anjos. Tu e as tuas crenças levar-te-ão longe. É preciso não perder a fé.

Seguimos em silêncio, até que às portas da aldeia me lembrei de que tinha um livro novo para ler. Tinha-o recebido, não das mãos da autora, mas sim de quem me sugeriu escrever sobre esta figura carismática que viveu por terras de Castro Daire. Quando nas instalações da Câmara Municipal de Castro Daire, mo colocaram nas mãos e me perguntaram: - Conhece esta autora daqui do concelho? Este foi dos livros de editou. O livro tem como título: Imagens da Beira Paiva. Sentei-me a ler até chegada a hora do jantar.
Quando por via do esquecimento perante o folhear sôfrego das páginas do livro, não me lembrei mais da fome, até que ouço a minha mãe chamar-me. O jantar estava na mesa. Meu pai arranjou forma de se sentir útil, e faz questão de colocar a mesa, não esquecer o vinho que ele próprio faz, o pão fresco do dia. Sentámo-nos por fim, depois de arrumar Imagens da Beira Paiva de Aurora Simões de Matos, juntamente com outro livro sobre as Siglas do Convento da Ermida da autoria de Abílio Pereira de Carvalho, um historiador e pioneiro por trilhos da serra, dando voz aos ecos do convento da Ermida como se pode ler no estudo que efetuou e já em livro.

Não fosse esta lonjura imensa e este pedaço de terra íngreme e agreste a separar-nos, e poderia ter aqui dois aliados neste caminhar sobre as minhas memórias a sentir o pulsar do coração da terra que é de todos nós.


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