domingo, 14 de setembro de 2008

Carta a Uma Amiga


A estabilidade é das coisas mais raras amiga. Gostava de poder dizer-te que para se atingir esse estado, são necessárias muitas mudanças, difíceis mas urgentes rumo a um novo caminho. O conhecimento de nós próprios.
Nunca soube o que era estar, ser em plenitude, dar-me sem medos, de sofrer.

Lá na minha aldeia, vivi esse estado, essa intensa plenitude. Cantava e o meu eco difundia-se por entre as serranias que me abrigavam do resto do mundo. Olhava o céu e via rasgos no céu azul, aviões que mais pareciam aves gigantes, que me conduziam o olhar a terras distantes, ainda por desbravar. Imaginação não me faltava quando num num fim de tarde depois da escola, com as teorias, os ensinamentos da História de Portugal e via-me por essas terras a viajar rumo ao desconhecido.
Nasci na aldeia de Moção em Castro Daire na Beira Alta, completei lá a quarta classe, assim como os meus dois irmãos, junto de uma avó materna e uma tia. Foram os meus melhores anos - a minha infância. O contacto com a natureza; as montanhas, o rio, os campos, a água a correr pelas pedras da calçada. Uma tia e uma avó que nunca foram á escola, mas que me transmitiram os seus valores, gente simples, de trabalho árduo da terra. Com a minha tia Carmo aprendi a comunicar com todos os seres vivos. Falava com as pedras, as plantas, a água os milhos, os feijões, as couves, os pássaros, o vento, a chuva…. Contava-me histórias umas de encantar, outras de amedrontar. Passavam de geração em geração, aquelas histórias que todos conhecemos. A minha avó Lívia era uma força, dentro da sensibilidade no feminino. Trabalhava a terra e não desistiu nunca de viver a vida intensamente, apesar das dificuldades daquela época, em que ficou só, após a emigração do meu avô para o Brasil. Um homem de nome Herculano que não conheci, por lá ficou e faleceu num acidente trágico. Lembro o ano em que iria regressar, após uma ausência de 28 anos, foi no inicio do verão, e as expectativas eram muitas. Tudo ficou num vazio, após a notícia da sua morte, em que ardeu o local de trabalho com ele dentro.
A imagem ainda presente, a descer a calçada com os olhares postos em mim. Eu de vestido branco rendilhado até ao joelho. Uma fita de cetim preta em forma de laço junto ao peito. A minha mãe fazia os meus vestidos. Gostava deles todos, porque rodava e eles faziam um balão. Até isso me deliciava – este envolvimento que me prendia isolando-me do que me rodeia. Um momento só meu em que faltou conhecer uma parte de mim. Ficou-se pelo sentir e pela força da minha imaginação.

Cheguei a Lisboa e lembro de perguntar à minha mãe se faltava muito para chegar. Ela responde “já estamos em Lisboa”. Uma tristeza invade-me alma. Lembro o azul do céu, as estrelas nas noites que sobrevoam as serras, o nascer do sol com os seus raios gigantes, o perfume que se solta no fim de tarde, e a minha aldeia sempre…Aqui respira-se…vive-se numa comunhão com a natureza e o seu esplendor.

Mª Dolores Marques

3 comentários:

Liliana Jardim disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Liliana Jardim disse...

Pinto numa tela
a infância de ti
pincelo com o arco-íris
a plenitude suprema
que em ti senti

Adoças a aridez das serranias
com o teu vestido rendilhado
e a tua inocente timidez
Ilumino o teu rosto com um sorriso
ávido de sentires mesclados de cor
Bebes a água cristalina das fontes
embebida nos gigantes raios solares
soalheiro das manhãs vindouras

Tagarelas docemente com as pedras,
o milho, os pássaros, o vento, o orvalho…
cúmplices nos segredos que segredas

Contemplas o céu nas noites estreladas
sentindo o desejo perene
de desbravar terras inexploradas

Saliento o traço do teu sorriso
extravasando a plenitude
do teu ser menina

Admiro a tela pintada de ti
e translado-me para lá do tempo …
brinco feliz nas serranias verdejantes
partilhando segredos de criança
em nós e por nós
no colorido do céu
descobrindo-te nas cores
da amizade….para sempre.
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Linda essa carta a esta amiga, sabes que adorei.

Beijo doce

AnaMar (pseudónimo) disse...

Linda carta de amizade em que te desnudas num pudor de infância feliz. Também sei esses sabores, esses aromas de serra, essa limpidez de veludo celestial.

Mas adoro Lisboa, que é a minha cidade natal, Lisboa de colinas e encantos por descobrir. Calçadas de paralelepípedos, passeios em arte calcetados, o regresso à cidade das luzes, quando volto das Serras. Sons e movimentos ímpares. Num complemento de exigências distintas. Assim sou eu.

Serena, pura e harmonia. Assim és tu
Um beijo