quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Encontros no Rio Paiva


Quando chega a primavera, o rio veste-se de prata em noites de luar e de dia assume-se cintilante. Um leito de seda pura, ladeado por serras coloridas, extasia-se com o seu perfume apaziguador, e os peixes vêm constantemente à tona da água, sôfregos e cansados das correntes frias do Inverno, e aí, se deliciam em águas quentes de um rio escondido das cidades negras e de asfaltos empedernidos. O caminho que nos guia até ao lago mais profundo, deixa a descoberto vestígios de um inverno agressivo. Vou descobrindo as mais belas rochas, umas mais rugosas, outras mais polidas, de variadíssimas tonalidades, as cores de um mundo que viaja sob um vento agreste, e deixa nos pinhais alguns resíduos surdos e distantes dos lamaçais. São carreiros estreitos que nos conduzem no meio dos pinheirais, sob raios de sol que se extinguem junto às encostas da serra. O silêncio é profundo, e ouvem-se os cantos das aves que sobrevoam os pinheiros mais altos, observando os novos visitantes, que são para eles uma invasão a um espaço que lhes pertence por direito. Os vestígios da ponte românica, reflecte-se no espelho de água, e deixa passar por entre algumas pedras graníticas a história de um tempo, memórias perdidas em lugares que abarcam segredos mágicos.
Os tempos modernos não se compadecem com recordações e avançam com outros estilos, outras gentes, outros pensamentos, e o rio que passa devagar, sobrevive e aguarda sempre por novas investidas. Vê-se chegar agora os carros que as pessoas vêm deixar com novos hábitos, novos costumes de uma civilização alheia e distante, invocando recordações de outras águas que são ondas de uma mar audaz.
O tempo pára enquanto a minha avó Lívia, se ocupa de outros afazeres, e até a massa estar pronta e o forno quente para a fornada semanal, nós aproveitamos para mais uma tarde de brincadeira com alguns mergulhos cronometrados nas águas calmas do rio.

Mas o rio é sempre um refúgio, uma janela aberta que sobrevive num tempo de memórias desiguais As rochas que ladeiam o rio são esculturas que o tempo deixou, e em fila voam corpos inclinados e queda certeira nas tenras águas que permanecem sempre iguais. As horas passam devagar, o sol vai espreitando atrevido, e eu por vezes olho-o em segredo e peço-lhe que fique mais um pouco e eternize estes momentos mágicos e faça parar o tempo. São as férias de verão que se querem sempre, e imagino não voltar a ver aquela professora traumática, que transforma as aulas numa prisão de delinquentes, soltando as garras afiadas, tingidas de vermelho em corpos tenros e delicados. Existem mais rapazes do que raparigas neste grupo, e eu tenho a sorte de ter um irmão mais novo, caso contrário, ficaria a olhar o rio ao longe da minha janela. Sempre participei nestas brincadeiras inventadas pelos rapazes, por isso nunca senti qualquer tipo de hostilidade pelo facto de ser rapariga. A minha companheira Ana, acompanha-me sempre nestas aventuras que o tempo tenta apagar. Hoje a tarde é para ser dedicada ao rio e ele recebe-nos sempre com uma cor diferente, conhece-nos e espera ansioso e há dias que o observo e sinto que faz parar as águas, para nos abraçar.
As emoções contrastam com esta paisagem e o sol tem agora um brilho mortiço sobre as serras que vão escurecendo. Alguém lembra outro jogo; escondermo-nos debaixo da agua e aguentar o maior tempo possível – “fica um de fora para ver quem ganha, os outros mergulham” diz o Mário e alternamos até conseguir ver sair o vencedor. O sol tem agora uma tonalidade diferente, o seu brilho está mortiço e as cores da serra vestem-se das sombras que esperam pelo luar em noites quentes e vamos de cabelos molhados, rostos avermelhados, subindo por caminhos que o sol já deixou, até chegarmos à aldeia. A minha avó já deu pela nossa ausência há algum tempo, e agora é pensar numa forma de nos desculparmos por esta fuga, e seja o que Deus quiser, porque o que significam uns leves tabefes da minha avó depois de uma tarde magnífica. Os nossos passos são lentos á medida que nos aproximamos de casa. Entramos pé ante pé e ficamos ali a conversar, eu e o meu irmão Herculano. O cheiro a pão acabado de sair do forno, aguça-nos o apetite e ouve-se a voz forte da minha avó. Estremeci quando a vejo dirigir-se a nós com os braços no ar e num deles sobrevoava um casaco grosso de lã que servia de agasalho nas noites frias de Inverno. Foi o que considerou ser mais leve para nos dar uns açoites bem merecidos. Olhei os olhos do meu irmão e ele ria-se enquanto encolhia os ombros não fosse ele um atrevidote brincalhão. Desta vez foi leve, já nos safámos. A minha tia Carmo deve andar por essas terras, nos seus passos lentos em busca de alguns frutos da época que começam a amadurecer, porque se fruta não houver, os silvados estão já carregados de amoras negras para nos deliciar.
O sol já não se vê e a aldeia povoa-se agora das gentes que regressam dos seus árduos trabalhos. Misturam-se cheiros no ar, são gentes que amam a terra e vêm no céu um rastro longínquo de um avião que outras terras vai encontrar, mas aqui é o melhor sítio para serenar.
À noite outros sonhos e aventuras vou encontrar, num céu onde as estrelas quase se podem apanhar.
Mª Dolores Marques

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